Doação de sede própria perpetua o legado da Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai no Brasil

Ivon Dedé, diretor técnico da AWKI; Antônio D’elia, presidente da AWKI; José Carlos Gomes de Oliveira, presidente da FPK; e Takeo Kikutake, fundador da Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai © Symbol Manon

Seguidores de Susumu Suzuki manifestam gratidão e honram o trabalho do mestre de karatê japonês no Brasil

Por PAULO PINTO
21 de junho de 2021 / Curitiba (PR)

Independentemente da luta diária pelo poder, que é inerente a toda e qualquer prática humana, as artes marciais japonesas e coreanas contêm incontáveis valores e aspectos sociais e humanos que as diferenciam das demais atividades socioculturais, esportivas e empresariais.

Um grande exemplo foi a iniciativa do professor de karatê-dô Antônio Cosme Iazzetti D’elia, que teve a gentileza (shin-setsu) de doar uma sede própria para a escola fundada pelo sensei Susumu Suzuki, professor japonês que difundiu no Brasil o ensino e a prática do karatê Wado-Ryu. Um gesto de gratidão (kansha) pelo aprendizado recebido de seu mestre.

Antônio D’elia fez a doação para que os amigos, ex-praticantes e as futuras gerações possam conhecer, treinar e sentir um pouco do verdadeiro espírito do karatê-dô e do que significa ser Kii-Kuu-Kai © Arquivo

Nascido em 10 de setembro de 1945 em Hokkaido, no Japão, Susumu Suzuki chegou em 1975 ao Brasil, onde fundou com sensei Takeo Kikutake a icônica escola de karatê-dô Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai Internacional (AWKI) em 1977. Após difundir o karatê-dô Wado-Ryu em vários Estados, sensei Susumu delegou aos seus três alunos mais graduados a responsabilidade de manter a tradição de sua escola. Depois de fazer a transmissão de conhecimento e formar centenas de karatecas no Brasil, sensei Suzuki, casado com Imiko Suzuki, retornou ao Japão em 1995, em busca da cura para um câncer, para o qual lamentavelmente perdeu a batalha em 10 de fevereiro de 1997.

Após a volta de Susumu ao Japão, Ivon Dedé foi a Tóquio para rever o amigo e o mestre em janeiro de 1996 © Arquivo

Na época da partida, Ivon da Rocha Dedé, yon-dan (4º dan); Antônio Cosme Iazzetti D’elia, san-dan (3º dan); e José Gracio, san-dan (3º dan) eram seus alunos com maior graduação. Coube aos dois mais graduados manter vivo o legado de Susumu Suzuki. Assim, Ivon da Rocha Dedé assumiu a direção técnica da entidade, enquanto Antônio Cosme Iazzetti D’elia foi nomeado presidente vitalício por mestre Susumu.

Ao retornar para o Japão sensei Suzuki deixou sua faixa preta com Ivon da Rocha Dedé, o aluno mais graduado. Nascido em 11 de fevereiro de 1958 no Espírito Santo, sensei Dedé foi criado na cidade de Guarulhos (SP) e viveu em Araraquara entre 1986 e 1997, a pedido de Susumu, para desenvolver o karatê-dô Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai naquela importante região do Estado de São Paulo.

Despedida do Susumu Suzuki do Brasil em julho de 1995, no dojô da matriz da Kii-Kuu-Kai na Rua Clélia na Lapa © Arquivo

Perpetuação do legado

Há um ditado que diz que a fruta não cai longe do pé, isto é, geralmente os filhos se parecem com seus pais, e em geral, nas artes marciais japonesas, os alunos costumam seguir os exemplos deixados por seus senseis. E a atitude tomada por um dos alunos do sensei Susumu Suzuki revela o respeito e o sentimento de gratidão ao legado do professor.

Em reconhecimento aos serviços prestados à comunidade, em especial na formação dos jovens, um ano após o falecimento de Susumu a Prefeitura de Araraquara prestou homenagem ao professor japonês dando seu nome a uma rua na Vila Xavier.

Jéferson Dedé, Ângela Dedé, Ivon Dedé Júnior, Ivon Dedé, Antônio D’elia, José Carlos e Takeo Kikutake © Symbol Manon

Em 2019, Antônio Cosme Iazzetti D’elia adquiriu um espaço para ser a sede da Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai no Brasil, como forma de gratidão aos mestres Susumu Suzuki, Takeo Kikutake e ao amigo de longos treinos Ivon da Rocha Dedé.

Desde então a escola de karatê Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai Internacional está instalada na Alameda dos Anapurus, 1473, em Moema, sofisticado bairro na Zona Sul de São Paulo.

José Carlos de Oliveira, Ivon da Rocha Dedé, Antônio Cosme Iazzetti D’elia, Débora Délia e Ângela Maria Rocha Dedé na cerimônia de lançamento da matriz da AWKI © Symbol Manon

Diretor técnico da escola desde a ida de Suzuki para o Japão, Ivon da Rocha Dedé é hoje vice-presidente da Federação Paulista de Karatê (FPK). Aluno mais graduado de Susumu, Dedé avalia o gesto sem precedentes do amigo D’elia.

“Antes de mais nada sou extremamente grato ao professor Antônio D’elia por termos tido a oportunidade de homenagear um dos maiores mestres de karatê que migraram para o Brasil no século passado. Entendo que seu gesto foi embasado na gratidão, na amizade e no respeito que estabeleceu com o professor Susumu Suzuki. Por meio dessa importante iniciativa pudemos difundir os ensinamentos do sensei Suzuki a milhares de praticantes que buscam aprimoramento pessoal por meio da prática da arte das mãos vazias.

Jéferson Dedé executa um tobi-nihon-geri no dojô da AWKI © Symbol Manon

Trajetória vencedora

Antônio Cosme Iazzetti D’elia, presidente da Associação Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai Internacional (AWKI), nasceu em 1955 em São Paulo e iniciou a prática das artes marciais em 1961 treinando judô com mestre Messias Rodarte Correa, renomado professor kodansha kyuu-dan (9º dan) da Zona Leste da capital paulista.

Ingressou no karatê em 1971 na Nihon Karatê Kyokai (NKK) com o mestre Taketo Okuda, lenda vida do estilo Shotokan que migrou para o Brasil no limiar da década de 1970. Okuda foi discípulo de Masatoshi Nakayama, aluno de Gichin Funakoshi, o fundador da escola Shotokan.

Alunos mais graduados participam da cerimônia de lançamento do dojô central da AWKI © Symbol Manon

Com sensei Okuda treinou no dojô da Rua Vergueiro até 1973 e em 1977 ingressou no recém-fundado dojô da Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai, dos mestres Susumu Suzuki e Takeo Kikutake, instalado na Academia de Judô dos irmãos Ono da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na qual obteve em 1983 a graduação de sho-dan. Recebeu o ni-dan em 1985 e o san-dan em 1988. Em sua trajetória nos tatamis foi atleta e conquistou diversos títulos de grande expressão, como o pentacampeonato brasileiro. Como árbitro nacional e internacional representou a FPK e a Kii-Kuu-Kai em diversos torneios estaduais, nacionais e internacionais, chegando a obter o título de árbitro internacional PUKO.

Como dirigente edificou uma trajetória vencedora. No início dos anos 1990 foi vice-presidente da FPK e em 1992 assumiu a presidência da FPK. Naquele ano instituiu o karatê como atividade gratuita para todas as idades no Ginásio do Ibirapuera, onde a escola se manteve por 28 anos ininterruptamente.

Antônio Cosme Iazzetti D’elia participou ativamente de todos os setores da gestão do karatê paulista © Arquivo

Diretor-geral da Kii-Kuu-Kai desde 1990, em 1994 foi nomeado presidente da entidade e recebeu o yon-dan (4º dan) por designação de Susumu Suzuki. Nessa mesma ocasião sensei Ivon da Rocha Dedé recebeu o go-dan (5º dan) e o título de diretor-técnico.

Ministrou karatê Wado-Ryu em diversas escolas e dojôs da cidade de São Paulo nos bairros Brooklin, Chácara Santo Antônio, Santo Amaro, Vila Olímpia, Jardim Paulista, Moema e Vila Nova Conceição.

Em 2013 adaptou os estatutos da então Kii-Kuu-Kai ao novo Código Civil Brasileiro e transformou a entidade na Associação Wado-Ryu Kii-Kuu-Kai Internacional (AWKI), da qual segue como presidente juntamente com Ivon da Rocha Dedé, que atua como diretor-técnico e o mestre Takeo Kikutake, vice-presidente fundador.

Antônio D’elia recebeu o go-dan (5º dan) da FPK/CBK em 2013 e sete anos depois, o roku-dan 6º dan, que lhe foi outorgado pela Federação Paulista de Karatê e pela Confederação Brasileira de Karatê.

Ivon Dedé recebendo o go-dan de Susumu Suzuki © Arquivo

Kansha e shin-setsu

Na tentativa de mostrar a gratidão (kansha) pelos ensinamentos deixados por seu mestre, D’elia explicou as razões da gentileza (shin-setsu) de doar o espaço que hoje abriga a sede da Kii-Kuu-Kai.

“Tudo isso é o reflexo de um longo processo de aprendizado e prática de muitos anos. Minha história no karatê leva mais de 40 anos e desde que ingressei na Kii-Kuu-Kai, em 1977, foram anos seguidos de desafios e dificuldades a serem vencidos. Nosso mestre fundador Susumu Suzuki praticava um karatê refinado e altamente técnico; ele era formado na Universidade de Rishou, em Tóquio, onde se projetou como atleta, capitão e depois técnico da equipe. Participou de competições internacionais, além de ter aprendido a essência do Wado-Ryu com Hironori Otsuka, fundador do estilo, e seu filho Jiro Otsuka. Suzuki era muito inteligente, altamente técnico e desenvolveu um método de ensino próprio, inovador e muito eficiente de treinamento. Era yon-dan (4º dan) quando escolheu o Brasil para vir ensinar o legitimo karatê Wado-Ryu. Ele poderia ter ido para a Austrália, Estados Unidos ou Europa, mas preferiu vir para o Brasil, para ser o diretor técnico da Wado-Kai e trabalhou muito dando aulas e treinos especiais pelo País inteiro, mas não teve seu trabalho reconhecido da forma merecida. Passou necessidade com a esposa e filho. Por questões de sobrevivência saiu da Wado-Kai, fundando a Kii-Kuu-Kai, junto com seu amigo Takeo Kikutake, que também tem uma história de muita luta e dificuldades no Japão e no Brasil.”

A partir da fundação a Kii-Kuu-Kai ambos tiveram as portas fechadas na FPK e sempre lutaram contra a adversidade e a perseguição política exercida pelos rivais do estilo Wado, que viam nele uma ameaça a sua hegemonia no Brasil.

Ivon Dedé, Osmar da Cruz, Manoel Symbol, Takeo Kikutake, Pedro Hidekasu Oshiro, ex-presidente da FPK e Antônio D’elia

“Foi assim durante muitos anos, aprendemos karatê participando de torneios e campeonatos regionais e interestaduais no circuito não oficial do karatê, o que foi muito rico e desafiador. Lembro de torneios nos quais defendemos São Paulo com uma única equipe, lutando diversas vezes contra seleções A e B de outros Estados com pelo menos o dobro de atletas, mas sempre fomos até o fim. A nossa marca sempre foi a raça, enfrentando sem medo nossos adversários”, pontuou o dirigente.

Sensei D’elia lembrou que no início dos anos 1990 houve um movimento de unificação do karatê liderado pelo professor Ennio Vezzuli em São Paulo e as portas se abriram parcialmente para a Kii-Kuu-Kai, cujos seguidores puderam participar de torneios oficiais. Contudo, a perseguição permaneceu de forma velada. “Era quase impossível para um de nossos atletas ter seus graus reconhecidos nos exames de graduação ou vencer um campeonato. Mesmo assim estávamos sempre lá lutando e deixando a nossa marca.”

Ivon Dedé Júnior, Ângela Dedé e Jéferson Dedé © Symbol Manon

“Na época eu era o atleta mais velho da Kii-Kuu-Kai e consegui obter o primeiro título oficial da FPK e isso aconteceu somente em 1987, no campeonato paulistano”, prosseguiu D’elia. “A partir daí comecei a participar ativamente como árbitro e de outras atividades da FPK, especialmente da modernização do karatê e adaptação as regras mundiais da WUKO, que chegavam com atraso de vários anos ao Brasil. Regras que, ironicamente, tinham sido criadas por Susumu Suzuki, Takeo Kikutake e Kenishi Shioda em 1979 e logo foram proscritas e encerradas no ano seguinte.”

Antonio D’elia participou com seu professor dos diversos seminários internacionais promovidos pela WUKO E PUKO para aprender aquilo que ele já conhecia a há mais de dez anos e que fora impedido de praticar e divulgar no Brasil.

Visão interna do dojô da AWKI © Arquivo

Mas os tempos estavam mudando e no final dos anos 1980 D’elia participou do grupo que queria a renovação da CBK, levando a entidade de Minas Gerais para São Paulo, o que ocorreu somente 1992. Ele assumiu a presidência da FPK e daí para frente as coisas melhoraram para a Kii-Kuu-Kai e seus atletas que começaram a brilhar também nos torneios e campeonatos oficiais.

“Mas infelizmente nosso sensei adoeceu e quis voltar com a família para o Japão, onde faleceu em 1997. Em paralelo minha vida profissional como engenheiro teve também seus desafios e sucessos. Posso dizer que atingi meus objetivos e no final de 2013 encerrei minha carreira de 40 anos na engenharia, na qual cheguei a vice-presidente executivo e liderei por alguns anos uma das maiores empresas do setor de engenharia consultiva do Brasil.”

Antônio D’elia e Ivon Dedé exibem os certificados de graduação emitidos pelos senseis Susumu Suzuki e Takeo Kikutake © Arquivo

“Posso garantir que a tenacidade, a fidelidade e principalmente o fato de não aceitar que o seu destino seja ditado pela vontade de terceiros foi a maior herança que recebi com nossos mestres na Kii-Kuu-Kai. Desde a partida de nosso sensei para o Japão, assumi a presidência da associação, juntamente com meu amigo e companheiro de luta, sensei Ivon da Rocha Dedé, e temos o compromisso de perenizar a Kii-Kuu-Kai de forma a permitir que o conhecimento e o espírito de luta de nossos mestres possam ser transmitidos a futuras gerações”, externou D’elia.

Agradecido por tudo que aprendeu com a prática do karatê, em 2019 Antônio D’elia instalou o dojô central da associação numa sede própria e, segundo ele, esta conquista simboliza a determinação e a fidelidade aos ideais que norteiam o Dô (caminho) da disciplina rigorosa, da filosofia e da ética.

“Fiz esta doação para que tenhamos uma sede permanente na qual nossos amigos, ex-praticantes e as novas gerações possam treinar e sentir um pouco do verdadeiro espírito do karatê-dô e do que significa ser Kii-Kuu-Kai”, concluiu D’elia.

Visão externa do dojô da AWKI que fica no segundo andar do edifício da Alameda dos Anapurus, 1473, em Moema © Arquivo