Dojô: fonte de conhecimento objetivo e conhecimento transcendente

Professores são, essencialmente, difusores de valores e símbolos

Somos, essencialmente, difusores de valores e símbolos, e é necessário encontrá-los por detrás de cada conhecimento técnico e explorá-los em benefício daqueles que recebem seu aprendizado do professor

Budô Way
17 de novembro de 2020
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO I Fotos GERALDO DE PAULA
Curitiba – PR

Estes tempos encardidos, como poderá perceber o observador mais atento, não desencadearam processos inteiramente novos, mas aceleraram aqueles que já se produziam antes na lentidão do andamento da civilização.

No ensino, mormente na prática das artes marciais, na convivência do dojô e todas as suas profundas significações, os efeitos acabaram ainda mais pronunciados, relevantes e até disruptivos.

Todos que conhecem o desenvolvimento das artes marciais no Ocidente – em especial as japonesas, que experimentaram maior disseminação após a 2ª Guerra Mundial e a ocupação norte-americana da intimorata ilha nipônica – sabem que o processo de aclimatação obedeceu a inúmeras etapas, com início na afirmação, no desenvolvimento de técnicas, surgimento de “academias”, absorção cultural e, finalmente, na transformação efetiva em método de educação, com toda a carga moral e formativa que somente a educação sabe transmitir.

Não é pequeno o desafio a que se propõe o professor nestes dias

Era nessa etapa em que nos achávamos, por certo em seus primeiros passos, quando o mundo foi coberto pelo negro manto da pandemia, fazendo-nos descontinuar aquilo que estava em curso, em todos os demais e deletérios efeitos, quer da doença, quer do comportamento social.

Mais do que nunca, e para a sobrevivência de métodos de abordagem que pareciam consagrados, ficou necessário afinar o conhecimento, depurando-o daquilo que agora menos importa, com foco no que efetivamente interessa.

Professores acostumaram-se a figurar como difusores de técnicas, ensinando aos alunos como melhor executar algum movimento ou tarefa. Foi necessário depurar as técnicas a serem empregadas, por vezes corrompidas pela enorme linha de transmissão desde a origem até o destinatário do conhecimento, mediante processo hoje enormemente encurtado, ou até substituído, pelo acesso fácil e a quem quer que seja, no mundo digital.

Esse conhecimento parecia bastar para a manutenção e propagação da onda, e mesmo do negócio que envolve as artes marciais. Mas, na vertiginosa aceleração dos processos, o modelo parece enveredar para o caminho do esgotamento, exigindo dos agentes a busca do verdadeiro papel que essa forma de ensinar haverá de ter no mundo que rapidamente se (trans) forma.

É necessário olhar “com olhos de ver” o que efetivamente significa o por vir e qual o papel reservado a cada um dos agentes no mundo que nos aguarda, submetido às tão rápidas quanto trepidantes transformações.

Dentre as tarefas reservadas ao professor, para muito além da difusão da informação – para a qual a rede sabe ser muito mais rica e eficiente –, está a nova habilidade em discernir, ou dissociar, o conhecimento objetivo do conhecimento transcendente.

Convém notar que não se trata de desdenhar o conhecimento tradicional, ou aquele que sempre foi transmitido de professor a alunos, mas nele identificar o que, além da técnica pura – bem ou mal transmitida –, há de aprendizado que transcende a relação entre professor e alunos, ou entre alunos, e ganha espaço e aplicação na vida externa ao dojô, seja a interior (anímica), seja a vida de relação.

Neste tempo em que os professores de artes marciais entenderam ser necessário investir na formação, quer acadêmica, quer intelectual, não lhes cabe ainda manter suas raízes exclusivamente nos modelos que, úteis a seu tempo, enfrentam o desgaste das exigências impostas pelo desenvolvimento civilizacional.

Há, em toda técnica, mais ou menos, o conhecimento que a transcende, não somente na prospecção de seus fundamentos, mas na significação mesma de sua existência, potência e efeitos.

A quem não encontrar sentido nas palavras acima, faço-me mais específico e claro: somos, essencialmente, difusores de valores e símbolos, e é necessário encontrá-los por detrás de cada conhecimento técnico e explorá-los em benefício daqueles que recebem seu aprendizado do professor.

Assumindo a condição de formador de outros seres humanos, o professor deve situar-se à altura de tão magnífica tarefa

Exemplos são muitos e, se os aqui relacionasse, este texto se estenderia desnecessariamente por milhares – senão milhões – de páginas. Observe-se o fenômeno do equilíbrio, tão essencial à execução de qualquer técnica corporal, em lutas ou em outras atividades físicas: há nítida transcendência nesse conhecimento, desde que seja possível vê-lo, experimentá-lo e analisá-lo em suas múltiplas dimensões.

A vida de qualquer indivíduo não é mais do que um curto período de equilíbrio em meio ao predominante caos cósmico.”

Há o equilíbrio físico, mas também o equilíbrio mental, o equilíbrio orgânico, e mais todas as outras formas de equilíbrio que a especulação intelectual poderá encontrar, todas representações, em múltiplos aspectos, do mesmo valor.

Isso para lembrar que o professor, ao ensinar e praticar o equilíbrio, haverá de considerar, em seu ensinamento, a grandeza desse valor, no plano físico, mas também no filosófico. Afinal, a vida de qualquer indivíduo não é mais do que um curto período de equilíbrio em meio ao predominante caos cósmico.

A essa perspectiva pode-se dar o nome de holismo, ou qualquer outra designação assemelhada, mas o que efetivamente importa são a compreensão e a dimensão do fenômeno.

Despido da condição de mero transmissor da informação técnica, a insistência desse modelo relegará à inutilidade o professor que a ela se limitar. Dele, e desde agora, está a exigir-se compreensão mais ampla do fenômeno em que se acha envolvido, do qual não passa de engrenagem que deve lutar para manter-se azeitada e, por isso, útil.

Esse conhecimento não se alcançará sem a formação cultural, a especulação filosófica, o conhecimento da física e a recuperação da história. Não é pequeno o desafio a que se propõe o professor nestes dias. Assumindo a condição de formador de outros seres humanos, deve situar-se à altura de tão magnífica tarefa.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.