15 de novembro de 2024
Edu, Nina e Joca: o trabalho por trás dos bonecos que animam o ensino do judô
Personagens criados por Kleber Balsanelli dão alma e agregam dinâmica ao sistema da Escola Nacional de Judô. Mas há muita pesquisa envolvida na construção dos vídeos pedagógicos
Escola Nacional de Judô
9 de junho de 2021
Por PAULO PINTO
Curitiba (PR)
Quando começou a praticar o judô, Kleber Alexandre Balsanelli descobriu que havia muito mais do que golpes e projeções na arte marcial japonesa. Além da filosofia de Jigoro Kano, lendas milenares, histórias reais e a experiência de grandes praticantes formam um universo fascinante a ser explorado. Cada descoberta tinha de ser compartilhada, e assim esse judoca tardio tornou-se um grande contador de histórias.
Kleber Alexandre Balsanelli é faixa-preta de judô (sho-dan), formado em direito com especialização em gestão pública e trabalha como Advogado da União (AGU). Seu talento foi reconhecido pela Escola Nacional de Judô, que o convidou para gravar vídeos contando essas histórias.
Os primeiros ficaram devendo bastante em qualidade, reconhece o autor, sem nenhuma experiência de falar para uma câmera. Isso aconteceu por volta de 2015. O trabalho evoluiu e surgiu a ideia de criar os personagens infantis representados por fantoches como forma de estabelecer forte empatia com a audiência.
Nesta reportagem mostramos grande parte do processo criativo de Kleber e de onde vêm sua inspiração e o material para criar tanto conteúdo informativo que, despretensiosamente vem estabelecendo uma forma de linguagem com atrativos que convidam cada vez mais crianças e adultos para os tatamis.
Usando bonecos para disseminar a prática do judô
Depois das gravações iniciais no ano de 2015 sobre a história do judô, Kleber propôs à Escola Nacional de Judô refazer o trabalho usando bonecos. “Na minha experiência com adultos em sala de aula, como instrutor na administração pública federal, observei que nada retém mais a atenção dos alunos, desperta maior curiosidade e fixa a informação do que a interação com um boneco”, conta. Principalmente nos dias de hoje, quando todos parecem envolvidos num mundo de telas e algoritmos.
Depois de passar quatro anos fora do Distrito Federal e quase esquecido do projeto com os fantoches, Kleber foi incentivado por seu professor e diretor da Escola Nacional de Judô, a retomar o projeto. “O desafio é sempre montar um conteúdo, a partir do cenário histórico e econômico do Japão, que tenha qualidade, confiabilidade e retenha a atenção das crianças e dos adultos por um determinado tempo”, confessa. “Por vezes, cansa. Tenho dificuldade em manter a regularidade e a atenção na leitura em que busco as informações por para montar as histórias e conciliar com meu trabalho e estudo.”
Mas os resultados surgiram logo. “A conexão e a resposta das pessoas com os pequenos Edu, Nina e Joca foram imediatas. O lúdico encanta e emociona. Se há emoção, há possibilidade de educação.” Veja que de início o editor-executivo da Revista Budô elegeu Joca, o judoca, sua figura predileta. Kleber aproveita para falar um pouco sobre o que inspirou cada personagem
“Joca é um menino de cerca de 9 anos, nascido em Bastos, São Paulo. Filho de pai japonês e mãe mineira. Muitos professores com ascendência japonesa levaram à construção dele. Mas, se eu pudesse citar um, seria o sensei Umakakeba, sobre o qual ouvi muitas histórias. Precisamos registrá-las.”
Outros espectadores vibram com o Edu, um menino mais agitado. Nasceu no sertão da Paraíba e morou muito tempo no Rio de Janeiro. “Acho que pensei no judoca Luciano Corrêa, campeão mundial, quando estava elaborando o Edu. E temos a Nina, uma menina forte, gentil, inteligente e bonita, criada em homenagem à sensei e escritora Eico Suzuki para dar voz a uma mulher dentro do judô”.
Para dar voz à menina Nina, sensei Balsanelli enfrentou dificuldades adicionais. “A dificuldade corre por conta do timbre da minha voz. Precisei procurar fonoaudióloga para praticar exercícios e fazer uma voz agradável aos ouvidos do público”. Ainda “cada um deles, ao seu modo, cativa de forma diferente as pessoas. Penso que a história, convicções e crenças pessoais fazem a conexão com um ou outro boneco”, avalia Kleber.
“Se há emoção, há possibilidade do processo de educação.”
“Isso é tudo muito novo”, prossegue. “Mas, dentro de minhas redes sociais, amigos e conhecidos começaram a fazer perguntas sobre o judô. Há uma curiosidade grande sobre samurais, Jigoro Kano e o esporte no Brasil. Ainda preciso estudar muito, preencher as dúvidas que tenho, mas o retorno que recebo via Escola Nacional de Judô me inspira a continuar, inclusive de professores de judô que pedem autorização para usar o material nas suas aulas.”
Encontro tardio
O primeiro contato de Kleber com o judô foi decepcionante. Ainda criança, foi levado pelo pai militar ao quartel e logo apresentado a um senhor forte, de aparência japonesa. “Este será seu sensei”, disse-lhe o pai. O nome soou agradável.
“Uma hora depois, ao subir escada que levava ao local de treinamento, comecei a ouvir os barulhos que as pessoas faziam. Fiquei à espreita. Corpos eram lançados contra o chão. Os judocas gritavam “ai” (muitos anos depois descobri que era o grito de kiai). Aquilo devia doer, pensei. Nunca mais quis mais saber de judô – fui jogar bola e praticar outros esportes menos arriscados e perigosos”, conta Kleber.
Mas a vida dá muitas voltas. Adulto, mais experiente, foi no judô que encontrou força para superar um momento dos mais difíceis.
“Estava com 30 anos e atravessava uma crise de depressão. Medicações, terapias, exercício físico – nada funcionava. Uma academia de judô que havia na entrada da rua onde morava me fez lembrar do meu pai dizendo: “Esse será o seu sensei”. Entrei num espaço amplo, arejado e muito iluminado chamado dojô, mergulhei de cabeça e comecei a praticar o judô. Hoje, 15 anos depois, tenho certeza absoluta de que esta foi a melhor decisão de minha vida.”
Após um bom período de imersão no mundo criado por sensei Kano, Kleber percebeu que o tal judô abrange coisas muito amplas e fundamentos que extrapolam o shiai-jô. E resolveu que iria estudar sobre o tema, visando a extrair maior aprendizado e benefícios da modalidade.
“Meus primeiros senseis, Ivanez Tomé e Altair Bezerra, procuravam manter a tradição do judô. Vestimenta, linguagem, reverências e até mesmo o tipo de movimento do corpo. Tudo muito próprio. Busquei pesquisar e saber com o que eu estava me envolvendo e comecei a ler sobre judô. As coisas começavam a fazer mais sentido.”
Os primeiros livros lidos por Kleber foram os dos memoráveis senseis Stanley Virgílio (A Arte do Judô, 1994, Editora Rígel) e Eico Suzuki, primeira mulher faixa preta da América Latina (O Pai da Educação Integral e o Universo do Judô, 1986, Editora do Escritor), verdadeiros manuais de instrução da arte criada no Japão.
Treinado num dojô atual, disruptivo e inovador
“Tive o privilégio de treinar em um dojô diferente. Usando um termo atual, com uma forma de pensar disruptiva e inovadora”, reconhece Kleber. “Tal qual anteviu Jigoro Kano, havia um propósito claro de educação integral. O judô era ensinado para integrar todos os aspectos da minha vida. Havia uma sistematização e organização do ensino do judô. Eu tinha inclusive acesso a material didático e fazia provas de história e técnicas do judô (online).”
Essa prática já existia naquele dojô em 2005, assim como a preocupação em viabilizar economicamente o ensino do judô, garantindo uma vida digna aos professores profissionais quando se aposentassem.
Foi nesse ambiente de treino que Kleber começou a contar histórias sobre o judô, mas de uma forma muito pessoal. E assunto não vai faltar: há um acervo imenso ainda não explorado sobre as origens do judô e sobre o país onde este esporte nasceu.
“Continuei lendo e contando histórias”, prossegue Kleber. Um livro que me encantou e estimulou a manter esse caminho foi escrito pelo sensei Rioiti Uchida e chama-se Uruwashi, o Espírito do Judô (Évora, 2013). Um belo e estético trabalho. A leitura dessa obra confirmou minha reflexão sobre a importância da educação integral do ser humano no judô.”
“Há tesouros na literatura sobre o judô escritos por nossos professores.”
A partir de 2015, depois de gravar os vídeos iniciais, Kleber ampliou sua busca por maior contato com outras preciosidades da literatura nacional do judô. Ele reconhece que nominar bons livros é uma questão delicada, pois sempre fica algo fora.
“Mas o reconhecimento genérico agrega pouco”, diz. “Por isso começo apontando a preocupação com a inserção das crianças no universo do judô, no trabalho realizado pelo sensei Sérgio Lex (Judô, aprender e gostar é só começar. Bueno Editora, 2017), o cuidado em rememorar nomes do judô e destacar o judô paralímpico, na obra do professor Chuno Mesquita (Judô, da reflexão à competição: o Caminho Suave. 2014, Interciência) e o livro do nosso primeiro medalhista olímpico Chiaki Ishii (Os pioneiros do judô no Brasil, Évora 2015) que resgata histórias e professores do judô no País.”
Estas obras ensinaram a Kleber muito sobre a arte viva, prática, artesanal e profissional que pulsa e se desenvolve por meio do judô. “Presto meu respeito a todos que escreveram livros que me chegaram às mãos, aos olhos e ao coração: Stanley Virgílio, Paulo Duarte, Eico Suzuki, Saray dos Santos, Débora Sá, Vera Sugai, Soraia André, Sumio Tsujimoto, Júlio Adnet, Christopher Otoshi e Max Trombini.
Trabalho feito com alma, trabalho feito com judô
Lembrando que um judoca também se emociona, o criador da turminha do Joca inclui a divulgação de livros escritos pelos senseis brasileiros nos seus vídeos. Segundo Kleber, um dos autores ficou tão emocionado que não conseguiu assistir ao vídeo até o fim na primeira vez.
“Recentemente, recebi um áudio de um professor kodansha, integrante de comissão de cursos de faixas pretas em seu Estado”, relata Kleber. “Ele considera o trabalho muito bom, pioneiro, e ficou contente. Um adulto emocionado significa que a arte com os bonecos atingiu seu objetivo. E esse sensei arrematou o áudio dizendo que a abordagem é muito profissional. Posso até dizer que vai além, é metaprofissional, um trabalho feito com alma, um trabalho feito com judô.”
Apaixonado pelo judô e por suas criações, Kleber revela a principal proposta do trabalho pedagógico que realiza com bonecos.
“Do ponto de vista geral, meu objetivo é contribuir com a formação socioeducativa por intermédio do judô. Incentivar que crianças e adultos procurem aperfeiçoar-se física, moral e mentalmente de forma lúdica e alegre. Que usem do método do treino corporal do judô para fortalecimento pessoal e desenvolvimento sociocultural da comunidade”.
Kleber entende que filosofia do judô decorre também dos grandes desafios e dificuldades que membros da equipe inicial de sensei Kano enfrentaram. Professores como Shiro Saigo, Tsujeniro Tomita, Yoshiaki Yamashita e Sakugiro Yokoiama defrontaram-se, no início da construção da história do judô, com o desafio de fazer conhecido e respeitado um novo estilo de ju-jutsu do Instituto Kodokan. E no Brasil a disseminação ocorreu graças ao empenho pessoal de muitos professores de judô, inclusive de professores não ligados originalmente à escola criada pelo shihan Jigoro Kano.
Pretende cada vez mais divulgar os livros de senseis do Brasil sobre o Japão, o judô e destacar a importância de professores. Em especial, ele cita dois nomes, a partir dos quais pretende honrar todos os senseis do “Caminho Suave”: o mestre Massao Shinohara, único judoca no Brasil a receber o 10º dan, e seu grande professor e mentor Ryuzo Ogawa.
Balsanelli destaca que no livro de Chiaki Ishii Shinohara é comparado a uma espada japonesa forjada por um grande artesão. A leitura do livro Os pioneiros do Judô no Brasil vale a pena. “Essa é minha forma de devolver à arte judô o equilíbrio que trouxe para a minha vida. Uma das formas do meu caminho, na condição de faixa preta, de contribuir para a divulgação do Caminho Suave e para que esta arte de paz, saúde respeito mútuo esteja na vida das pessoas.”
Importância da Escola Nacional de Judô
Ao avaliar de que forma as personagens Edu, Nina e Joca contribuem para o desenvolvimento cognitivo das crianças ensinadas pelo método da ENJ, Kleber destaca o respeito com que são tratadas por toda a equipe da escola.
“Percebo que Edu, Nina e Joca sopram um pouquinho mais de arte no grandioso e técnico trabalho produzido pela Escola Nacional de Judô. Os demais integrantes da escola acolheram-nos com muito respeito e um carinho gigantesco. Talvez este seja o principal ingrediente nesta parceria que deu certo. Repreendem-me quando eu me refiro aos ‘bonecos’, afirmam que são os ‘meninos’.”
Nos 15 anos em que vem acompanhando a ENJ, Kleber percebe o constante investimento em tecnologia e o aperfeiçoamento da qualidade do material empregado pela direção da escola. Segundo ele, basta visitar o site da ENJ ou suas redes sociais para reconhecer esse aspecto objetivo.
“Mas eu gostaria de acrescentar outro ponto”, diz Kleber. “A ENJ possui o propósito de contribuir para que os professores de judô vivam da arte marcial de forma digna. É um sistema pedagógico criado para ajudar, que vai além do aspecto profissional. Uma pedagogia feita com alma.”
Como exemplo ele cita a série Kodanshas do Brasil, na qual há um trabalho de resgate e valorização da imagem e das histórias de homens e mulheres que perpetuam verdadeiramente o judô no País. “E grande parte dos nossos mestres de judô estão passando dificuldades econômicas em suas vidas. Como construir caminhos para ajudá-los e romper esse ciclo de dificuldades?”
Para sensei Kleber, o maior desafio do judô neste segundo ano de pandemia não é apenas manter o peso e a regularidade na atividade física. “Em verdade, o principal desafio será discutir o processo de construção de protocolos, de espaços de treinos e de combate com segurança para alunos e professores, até que haja ampla cobertura de vacinas no País. É desafiador. Sabemos que a realidade se impõe. Várias academias já voltaram a treinar. Mas precisamos debater, construir e compartilhar protocolos de segurança economicamente viáveis, com redução de risco de transmissão da doença e, por consequência, de sequelas e morte dos praticantes da arte e de toda a nossa comunidade.”.”
O professor Kleber entende também que o principal papel do judô é divulgar valores de integridade pessoal e social. “O judô é um símbolo para a sociedade e como tal precisa ser utilizado para divulgar os valores e formar pessoas que cultuem a integridade pessoal e social, ou seja, o judô deve cumprir o propósito original de Jigoro Kano: educar o ser humano.”
Visto sob uma concepção mais ampla, o judô é a melhor forma de viabilizar a educação do ser humano, em toda a sua integridade física, mental e espiritual, por intermédio do uso eficiente do corpo e em benefício da sociedade. Um caminho concreto é apoiar e valorizar os professores de judô. “Numa sociedade liberal e capitalista, estamos atrás de resultados. Sim, devemos apoiar os atletas e professores de atletas que surgem e trazem medalhas, patrocínio e visibilidade para a arte. Mas essa é apenas uma parte importante da arte judô.”
Kleber entende que a grande sacada da ENJ no processo de inovação da gestão de academias e dojôs de judô, karatê, jiu-jitsu, aikidô e demais modalidades e esportes de combate é o ciclo completo de formação técnica e de gestão para os alunos e professores do País.
“A ENJ oferece produtos e serviços diversos: material didático de qualidade, provas virtuais, cursos de gestão de academias e um sistema para acompanhamento integral das atividades das academias de esportes de combate, em especial o judô (Fuji, gestão de academias)”, exemplifica. Além disso, nestes tempos de pandemia, a ENJ tem-se mostrado grande parceira de academias e federações, com o suporte de sistema para a continuidade das atividades de formação e certificação dos praticantes das artes marciais.
Luz, câmera e ação na escola
Além de todo trabalho na criação e na produção dos vídeos, Kleber acumula as funções de construção do roteiro, iluminação do ambiente, captação do som e gravação original em duas câmeras.
“Por conta das restrições na pandemia, trabalho atualmente no meu apartamento, em meu escritório, normalmente em fins de semana, quando sobra tempo para a atividade. Também faço parte das fotografias que são exibidas nos vídeos. Esse material bruto é submetido à Escola Nacional de Judô, que faz a edição final do vídeo, harmonização do som, retirada dos erros de gravação, redução dos ruídos, inserções musicais e de créditos etc. O material é divulgado pelo Instagram e publicado no canal do YouTube da ENJ.
Além do professor Kleber Balsanelli a equipe da Escola Nacional de Judô é comandada pelo professor kodansha shichi-dan (7º dan) Altair Bezerra de Araújo que é diretor-executivo e professor de Educação Física; professora sho-dan Rosemary Domingues Wargas que é psicóloga e diretora-administrativa do Sistema Fuji; Luiz Henrique Pimentel, diretor jurídico; Juracy Pereira de Santana Filho, coordenador de TI; Felipe Pimentel, diretor de criação; e Luciana Balsanelli, consultora.