Energia Espiritual (ki)

A energia é imaterial e inerente à fenomenologia da vida © Budopress

Dominar o ki é ter consciência da fraqueza, a ser enfrentada com o alinhamento de forças físicas e psíquicas em nome de um resultado eticamente elevado

Budô
12 de maio de 2021
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
Curitiba (PR)

No contexto das artes marciais este conceito deriva de longa tradição cultural chinesa e japonesa.  O ideograma corresponde à expressão em japonês (氣) e encerra a ideia do vapor que se desprende no cozimento do arroz.  E o arroz, no Japão, representa muito mais do que um alimento complementar, sintetizando o conceito de alimento.  Daí a metáfora contida no ideograma sobre os vapores que emergem dos alimentos, todos os vapores e todos os alimentos, também aqueles que nutrem a alma.  Em latim spiritus pode significar sopro, algo como emanação, ou o produto imaterial da existência física.  Assim se traduz “ki” para a locução “energia espiritual”.

Desde a antiguidade percebeu-se que os fenômenos não se esgotam no que pode ser visto, mas também no que pode ser sentido e em tudo mais que pode existir sem ser captado pelos limites estreitos da percepção humana em seus cinco sentidos físicos.

A energia espiritual, para além das abordagens esotéricas e religiosas, tem sua dimensão fenomenológica. Para o budoka tem um sentido próprio, na interseção entre o abstrato e o concreto.  A ação física, material no plano nos músculos, ossos e articulações, deriva de um tão complexo como incognoscível conjunto de circunstâncias cuja resultante é o gesto, a aplicação aguda e pontual da técnica, que por isso mesmo exala múltiplos significados.

Imponderável a miríade de elementos que estão na gênese e na execução do gesto, mas é inquestionável que se trata da expressão acabada do ki, na sua acepção mais pura.  A simples elaboração técnica, ainda que possa ser concentrada por modelos teóricos – como de fato é –, não atinge senão a superfície do fenômeno, que exige a repetição exaustiva da ação, por vezes nas fronteiras da completa exaustão, de modo a torná-la tão íntima do praticante quanto se sempre fosse sua desde o nascimento.

Não há ki sem que os músculos da mente estejam em sintonia © Budopress

Esse fluxo energético que leva o budoka à prática, que o conduz pelo “caminho”, e autoriza a execução do ato, temos por “ki”, ou a síntese das forças humanas, psíquicas e físicas, materiais e imateriais.

Imaginemos o praticante que realmente se dedicou, que executou seu treinamento até o limite de suas forças, mas ao ser levado a executar e técnica falta-lhe convicção e sinceridade, a genuína expressão de sua identidade: falta-lhe o ki!  Todos sabem que malogrará em qualquer dos sentidos do malogro, desde a derrota pessoal e íntima até o revés frente o possível adversário, sempre lembrando que ser vencido por outrem não significa necessariamente derrota no plano interior.

Dominar o ki é ter consciência da fraqueza, a ser enfrentada com o alinhamento de forças físicas e psíquicas em nome de um resultado eticamente elevado.”

Trata-se de mais do que ossos, músculos e disposição; muito mais.  Cogita-se de forças mais profundas e intuitivas, que se reúnem em busca de uma singularidade raramente alcançada.  O ki revela-se na capacidade de atrair todos esses fenômenos para um só momento, o alinhamento das forças físicas, da ação muscular, da posição dos ossos e das articulações, mas também da conduta psíquica a que damos o nome de dimensão espiritual.  Não há ki sem que os músculos da mente estejam em sintonia, assim como aqueles que equilibram o corpo, pois se trata da expressão mais profunda e íntegra da humanidade.

Há no ki a consciência profunda dos limites humanos, bem ao contrário da percepção de que tal energia é usada para expandi-los.  O ki é a consciência do todo e do tudo na justa aplicação desse conhecimento à vida e à morte.

O Budô é justamente o exercício do ki, o domínio de algo que existe em cada corpo e em cada consciência, em cada cérebro e na sua dimensão abstrata que chamamos de mente, e que pode ser explorado na busca da verdade.  O ki é – se fosse possível sintetizá-lo –, a verdade que subjaz em cada um daqueles que desejar conhecê-la.

Praticar é produzir energia, torná-la aguda para depois vê-la ser dissipada pelo tempo, assim como se dissipam as existências embretadas entre o nascimento e a morte. A energia é imaterial e inerente à fenomenologia da vida.

Todos os que praticam sabem e já vivenciaram: não se trata de uma demonstração exuberante de energia, pois não fomos beneficiados pela evolução com força e armas naturais.  Vivemos administrando a escassez.  Ainda que possamos buscar a interpretação de fenômenos gigantescos da natureza, como os terremotos e erupções vulcânicas, sabemos ser credores de escassas fontes de energia naturais, não nos restando alternativa senão otimizá-las, reuni-las sobre determinado ponto e fração de tempo, quando se manifesta, na sua melhor performance, a energia espiritual.

Dominar o ki é ter consciência da fraqueza, a ser enfrentada com o alinhamento de forças físicas e psíquicas em nome de um resultado eticamente elevado.  É para poucos que o destino permite essa exaltação.  O caminho é duro, áspero demais para as almas fúteis.  Mas aquele que dominar sua energia espiritual saberá de si mesmo e a essência de sua existência neste mundo.  Disporá de pernas fortes para trilhar seu “caminho” com a certeza de sua dramática finitude, único remédio para preservar a dignidade.