20 de novembro de 2024
Energia Espiritual – ki (氣)
Desde a antiguidade percebeu-se que os fenômenos não se esgotam no que pode ser visto, mas também no que pode ser sentido e em tudo mais que pode existir sem ser captado pelos limites da percepção humana em seus cinco sentidos físicos.
Por Fernando Malheiros Filho
22 de junho de 2024 / Curitiba (PR)
No contexto das artes marciais este conceito deriva de longa tradição cultural chinesa e japonesa. O ideograma corresponde à expressão em japonês (氣) e encerra a ideia do vapor que se desprende no cozimento do arroz. E o arroz, no Japão, representa muito mais do que um alimento complementar, sintetizando o conceito de alimento. Daí a metáfora contida no ideograma sobre os vapores que emergem dos alimentos, todos os vapores e todos os alimentos, também aqueles que nutrem a alma. Em latim spiritus pode significar sopro, algo como emanação, ou o produto imaterial da existência física. Assim se traduz “ki” para a locução “energia espiritual”.
Desde a antiguidade percebeu-se que os fenômenos não se esgotam no que pode ser visto, mas também no que pode ser sentido e em tudo mais que pode existir sem ser captado pelos limites estreitos da percepção humana em seus cinco sentidos físicos.
A energia espiritual, para além das abordagens esotéricas e religiosas, tem sua dimensão fenomenológica. Para o budoka tem um sentido próprio, na interseção entre o abstrato e o concreto. A ação física, material no plano nos músculos, ossos e articulações, deriva de um tão complexo como incognoscível conjunto de circunstâncias cuja resultante é o gesto, a aplicação aguda e pontual da técnica, que por isso mesmo exala múltiplos significados.
Imponderável a miríade de elementos que estão na gênese e na execução do gesto, mas é inquestionável que se trata da expressão acabada do ki, na sua acepção mais pura. A simples elaboração técnica, ainda que possa ser concentrada por modelos teóricos – como de fato é –, não atinge senão a superfície do fenômeno, que exige a repetição exaustiva da ação, por vezes nas fronteiras da completa exaustão, de modo a torná-la tão íntima do praticante quanto se sempre fosse sua desde o nascimento.
Esse fluxo energético que leva o budoka à prática, que o conduz pelo “caminho”, e autoriza a execução do ato, temos por “ki”, ou a síntese das forças humanas, psíquicas e físicas, materiais e imateriais.
Imaginemos o praticante que realmente se dedicou, que executou seu treinamento até o limite de suas forças, mas ao ser levado a executar e técnica falta-lhe convicção e sinceridade, a genuína expressão de sua identidade: falta-lhe o ki! Todos sabem que malogrará em qualquer dos sentidos do malogro, desde a derrota pessoal e íntima até o revés frente o possível adversário, sempre lembrando que ser vencido por outrem não significa necessariamente derrota no plano interior.
“Dominar o ki é ter consciência da fraqueza, a ser enfrentada com o alinhamento de forças físicas e psíquicas em nome de um resultado eticamente elevado.”
Trata-se de mais do que ossos, músculos e disposição; muito mais. Cogita-se de forças mais profundas e intuitivas, que se reúnem em busca de uma singularidade raramente alcançada. O ki revela-se na capacidade de atrair todos esses fenômenos para um só momento, o alinhamento das forças físicas, da ação muscular, da posição dos ossos e das articulações, mas também da conduta psíquica a que damos o nome de dimensão espiritual. Não há ki sem que os músculos da mente estejam em sintonia, assim como aqueles que equilibram o corpo, pois se trata da expressão mais profunda e íntegra da humanidade.
Há no ki a consciência profunda dos limites humanos, bem ao contrário da percepção de que tal energia é usada para expandi-los. O ki é a consciência do todo e do tudo na justa aplicação desse conhecimento à vida e à morte.
O Budô é justamente o exercício do ki, o domínio de algo que existe em cada corpo e em cada consciência, em cada cérebro e na sua dimensão abstrata que chamamos de mente, e que pode ser explorado na busca da verdade. O ki é – se fosse possível sintetizá-lo –, a verdade que subjaz em cada um daqueles que desejar conhecê-la.
Praticar é produzir energia, torná-la aguda para depois vê-la ser dissipada pelo tempo, assim como se dissipam as existências embretadas entre o nascimento e a morte. A energia é imaterial e inerente à fenomenologia da vida.
Todos os que praticam sabem e já vivenciaram: não se trata de uma demonstração exuberante de energia, pois não fomos beneficiados pela evolução com força e armas naturais. Vivemos administrando a escassez. Ainda que possamos buscar a interpretação de fenômenos gigantescos da natureza, como os terremotos e erupções vulcânicas, sabemos ser credores de escassas fontes de energia naturais, não nos restando alternativa senão otimizá-las, reuni-las sobre determinado ponto e fração de tempo, quando se manifesta, na sua melhor performance, a energia espiritual.
Dominar o ki é ter consciência da fraqueza, a ser enfrentada com o alinhamento de forças físicas e psíquicas em nome de um resultado eticamente elevado. É para poucos que o destino permite essa exaltação.
O caminho é duro, áspero demais para as almas fúteis. Mas aquele que dominar sua energia espiritual saberá de si mesmo e a essência de sua existência neste mundo. Disporá de pernas fortes para trilhar seu “caminho” com a certeza de sua dramática finitude, único remédio para preservar a dignidade.