Gendai Budô e Koryū Budô

A distinção entre Gendai Budô e Koryū Budô possui raízes profundas na história e na cultura japonesas © Kuroryukan Dojo

Nenhuma arte marcial moderna prescinde das técnicas que originalmente foram desenvolvidas e aperfeiçoadas com o propósito de ferir ou até matar o oponente

Por Fernando Malheiros Filho
30 de julho de 2022 / Curitiba – PR

Em tradução livre, a primeira expressão que intitula estas linhas significa “artes marciais modernas”, enquanto a segunda quer dizer “artes marciais antigas ou clássicas”.

A distinção tem raízes profundas na história e na cultura japonesas. O sistema feudal japonês, como no Ocidente, dispunha de seus suseranos e dos servos da gleba, cabendo a estes a absoluta subserviência aos primeiros, seus senhores. Os suseranos, no Japão, eram conhecidos como daimyōs, e os servos, samurais, daí a origem do ideograma respectivo (侍), que em tradução livre significa “aquele que serve”.

O Japão tem pequena extensão territorial, ilha vulcânica com não muito solo agriculturável, gerando as inevitáveis disputas pela terra. Paulatinamente, e sob a influência da cultura local, os antigos servos da gleba – os samurais – foram convertendo-se em soldados a serviço de seu o suserano, utilizados nas inúmeras disputas despertadas naquele período entre os clãs que dominavam o cenário do poder.

O ápice desses conflitos deu-se com as chamadas “guerras samuraicas”, entre o final do século XVI da nossa era e o início do século XVII. Finalmente, após sangrentos embates, que encontrou seu zênite na batalha de Sekigahara (21 de outubro de 1600), ascendeu ao poder Tokugawa Ieyasu, inaugurando o Período Tokugawa (24 de março de 1603, que corresponde ao 12º dia do segundo mês do ano 8 da era Keichō, no calendário tradicional japonês), ditadura militar dominada pelos samurais, que somente teria fim com a Restauração Meiji (1868).

No período Tokugawa, começando por Ieyasu, que faleceu em 1616, elevado à condição de shōgun, o clã dominante tratou de esterilizar a força militar dos submetidos, controlando com mão de ferro todos os demais líderes. Para isso, serviu-se das mais variadas estratégias, desde mantê-los desarmados, virtualmente prisioneiros, nas proximidades do shōgun, ou como reféns, evitando outros levantes armados, como fora cotidiano na história anterior do país.

Ii Naosuke era um Daimiô © Ii Naoyasu (1851-1935)

Sobreveio a paz forçada e os soldados que, por gerações, foram preparados para a luta, perderam seu principal mister: surgiram os rōnins (samurais sem amo) e as escolas de artes da guerra. Antes apenas dedicadas à formação de soldados, lentamente converteram-se em centros de educação.

O período Tokugawa perdurou por cerca de 250 anos, até que, solapado pelo peso da burocracia e pela repulsa às arbitrariedades praticadas pelos samurais, o clã foi deposto. Mas não sem novo enfrentamento militar, embora de curta duração (Guerra Boshin).

Com a chamada Restauração Meiji (1868/1912), o Japão respirou novos ares. O imperador – jamais efetivamente deposto pelos samurais – recuperou suas funções, o país abriu-se ao exterior, resultando em maior integração das classes sociais, ossificadas em sua condição ao tempo do shogunato Tokugawa. Em 1876, o decreto Haitorei proibiu que os samurais portassem seus sabres (katana) em público, com o intuito de evitar a violência pela qual eram conhecidos.

Essa transição histórica resultou em grandes e profundas alterações na compreensão e na prática das artes marciais. Outrora treinamento para formação do soldado, preparando-o para lutar ou morrer (daí a grande influência do zen-budismo e seu desapego à vida), passaram a representar instrumento de educação e formação.

Ainda que as escolas modernas (judō, karate-dō, aikidō e todas as demais) ainda tardassem a se estruturar, fenômeno que somente ganharia corpo e dimensão já no século XX, credita-se à Restauração Meiji essa espécie de virada, ou ponto de inflexão, na conversão das artes marciais antigas nas modernas, nas quais predominam a educação, a filosofia e o desporto.

A transição, contudo, jamais foi isenta de contradições e paradoxos, o principal deles na conversão da violência pura, representada pela guerra e morte, na educação e formação do ser humano.

Nenhuma arte marcial moderna prescinde da utilização – e transmissão entre gerações de alunos e professores – das técnicas que por séculos foram desenvolvidas e aperfeiçoadas com o propósito de lesar o oponente, e até matá-lo. Como conciliar o exercício civilizacional da educação com a arte da guerra?

O tema é complexo e envolve a compreensão da natureza humana e sua origem. Desde os primatas que nos antecederam até nossos dias, nossos ancestrais e nós, jamais deixamos de fazer guerra. Não só ao praticá-la efetivamente (quando escrevo essas linhas está em curso a Guerra da Ucrânia, há conflitos generalizados no Oriente Médio e na África, além das verdadeiras guerras urbanas, em quase todo o mundo, patrocinadas pelas facções criminosas, tanto entre si como contra as forças do Estado), como também ao manter, e treinar, forças militares e de segurança: os romanos, com sabedoria, escreveram: Si vis pacem, para bellum, ou “se quer paz, prepare-se para a guerra”. Jamais foi possível a paz completa e duradoura, nossa natureza não o permite.

É também expressão do mesmo ímpeto a conhecida saudação daqueles que, sabendo da morte iminente em batalha simulada, prostavam-se ao imperador romano: Ave Imperator, morituri te salutant, ou “Salve Imperador, aqueles que vão morrer o saúdam” (provavelmente data em 52 d.C., quando no lago Fucino, Roma, cativos e criminosos estavam fadados a morrer lutando durante a simulação de uma batalha naval, na presença do imperador Cláudio. O historiador romano Suetônio relata que, à saudação, o imperador respondeu aut non, ou seja, “ou não”).

Justamente nessa natureza, sua expressão e manifestação, que as artes marciais modernas encontram seu campo de atuação. Não é possível evitar a alma agressiva do ser humano, mas é razoável tentar condicioná-la e dominá-la pela prática.

Tela japonesa retratando a Batalha de Sekigahara. Esta réplica de 1854 recria o original Hikone-jō Bon Sekigahara Kassen Byōbu © User Lord Ameth on en.wikipedia Collection of The Town of Sekigahara Archive of History and Cultural Anthropology

Em outras palavras, provavelmente não há alternativa para a domesticação da natureza violenta senão expressá-la e, assim, compreendê-la, controlando-a em favor da compreensão profunda da própria natureza humana.

Até mesmo as modalidades esportivas diversas das artes marciais emulam combates, diluídos em sua periculosidade – não sem riscos e eventuais manifestações de violência – com regras capazes de atribuir a vitória ao time mais hábil. Não por outra razão, o linguajar esportivo tem origem na batalha: arqueiros (referência aos goleiros no futebol), defensores, atacantes, tiros, bombas, são comuns na descrição das disputas esportivas, todas, pelo menos aparentemente, mantidas para a confraternização entre grupos, estados ou países.

Para as artes marciais modernas, e sua recente vertente desportiva, o contato com a natureza do ser humano é ainda mais direto. A violência está no gesto, até no risco de sua execução, e representa acesso aos mais remotos estamentos da natureza do ser.

A violência explícita dos movimentos – e seu inegável propósito – está no cerne de toda a reflexão: não será possível entender essa essência se for negada, se não for exposta e manuseada.

Essa é a semente do que hoje conhecemos por Gendai Budô, que não pode prescindir de seu antecedente Koryū Budô. Embora possa matar, o praticante, no exercício de sua arte, reconhece a si mesmo, seus instintos, passando a ser capaz de refreá-los, quiçá utilizá-los em situações extremas, mas sempre escolhendo serenamente a melhor das alternativas.

O caminho do guerreiro (武道 Budō) deixou de ter por destino aquele do passado: matar ou morrer. Daquilo restou o método, poderoso instrumento de autocompreensão.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.

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