05 de maio de 2025

Este artigo, publicado originalmente na edição nº 3 da Revista Budô, foi escrito pelo erudito professor kodansha Paulo Roberto Duarte — mentor de grandes ases do judô nacional e de renomados medalhistas olímpicos e mundiais como Rogério Sampaio, Leandro Guilheiro e Danielle Zangrando. Mais atual do que nunca, o texto revela uma visão transcendental sobre a formação humana e espiritual do judoca, oferecendo uma leitura profunda sobre o verdadeiro sentido do hara, centro energético e simbólico do corpo, da mente e do caráter.
“Peito para fora, barriga para dentro”. Quando esse chavão se transforma em ordem generalizada, pode representar um risco silencioso. À primeira vista, trata-se apenas de uma recomendação postural. No entanto, segundo a sabedoria oriental, essa postura desestabiliza o centro de gravidade natural do ser humano — localizado na região abdominal, conhecida como hara — e projeta o ego para o alto, deslocando-o de sua base original.
Nos meios militares, essa expressão é corriqueira. Pretende, unicamente, melhorar a postura dos soldados. Mas seus efeitos vão além da estética ou da disciplina corporal: ao comprimir o abdômen e projetar o peito, desloca-se simbolicamente o ego para a região superior do corpo, o que, segundo os ensinamentos orientais, é fonte de desequilíbrios. O ego, por natureza, deveria ser servo — e jamais comandante. Quando assume o controle, a desarmonia se instala.
Ao nascer, o ser humano traz consigo a centelha divina, comumente chamada de essência — um núcleo de potencial elevado, que busca florescer à medida que a consciência se desenvolve. Paralelamente, forma-se a personalidade, construída a partir da vivência, da cultura e das escolhas. Com o tempo, o ego se identifica com essa personalidade e busca independência, distanciando-se da essência e tomando para si um protagonismo que nunca lhe pertenceu.
Nesse processo, a personalidade torna-se uma crosta que sufoca a essência. Quanto mais ela cresce, mais a essência se retrai. Perde-se, assim, o vínculo com o centro original do ser. O domínio da personalidade revela-se no excesso de suscetibilidade, no acúmulo de desejos e posses, na violência que germina da separação entre corpo e espírito. Combater esse ego inflado, que atua de forma autônoma e desconectada da totalidade, é o grande desafio daquele que busca equilíbrio e unidade.
“Entre a técnica e o espírito: como o hara conecta corpo, mente e propósito no caminho do judô.”
O hara, na cultura japonesa, é o símbolo dessa presença consciente e integrada. Ele representa o centro original que ajuda o homem a enfrentar suas dificuldades sem se fragmentar. No entanto, a indulgência em relação ao ego cria uma tensão permanente entre corpo e espírito, terra e céu. O homem moderno vive tentando resolver esse conflito, mas só o consegue quando reencontra sua unidade — quando espírito e corpo voltam a ser um.
Destruir parte da personalidade para libertar a essência é o objetivo mais profundo do ser humano. A unidade plena só se alcança na reconexão com o hara.
Com esse entendimento, mestre Jigoro Kano estruturou sua arte, ancorando todo o judô na formação do hara. No judô, a postura ereta e firme não é apenas uma exigência técnica — é uma expressão física da integridade espiritual. Onde há má postura, há ausência do hara. O ego, nesse caso, assumiu o trono. O judoca encolhido, inseguro, está mais preocupado com o resultado do que com o processo. O ego anseia por títulos, glórias e reconhecimento imediato.
O cidadão comum responde com a cabeça, impulsivamente. Suas palavras estão sempre na ponta da língua, junto da insensatez. Já aquele que age com o hara elabora sua resposta com profundidade, percorre um caminho mais longo e oferece uma fala ponderada e equilibrada.
O relaxamento do koshi (quadril) e dos músculos abdominais evita que o ego suba. Ancorado no hara, o judoca se move com leveza e firmeza. O tanden — ponto localizado quatro dedos abaixo do umbigo — é fundamental para o enraizamento no solo e, simbolicamente, na vida. Essa ancoragem oferece segurança para que o judoca, e também o cidadão, vivam e lutem com coragem, entrega e sentido.
Paulo Duarte é
05 de maio de 2025
04 de maio de 2025
02 de maio de 2025