17 de novembro de 2024
Judô brasileiro se despede de sua maior referência no kata
Discípulo direto de Yoshio Kihara, sensei Mário Katsumi Matsuda foi um dos maiores propagadores dos fundamentos do judô, por meio do kata. Afastado dos tatamis por problemas de saúde, com seu falecimento o professor paulista deixa um exemplo de abnegação
Memória
04/01/2018
Por PAULO PINTO | Fotos ARQUIVO
São Paulo – SP
Há décadas o judô brasileiro é contemplado com o trabalho, a determinação e o esforço de dezenas de professores que passam suas vidas difundindo a arte e os princípios do judô. Entre eles, o professor Mário Katsumi Matsuda, 8º dan, transcendeu aspectos básicos e competitivos da modalidade e dedicou-se eminentemente à transmissão do kata, importante fundamento criado por Jigoro Kano no fim do século 19, que até hoje alicerça a base teórica daqueles que praticam o verdadeiro judô.
Formado no renomado dojô do Parque Dom Pedro II, a Associação Kodokan de Judô, fundada pelo renomado professor Yoshio Kihara em 15 de outubro de 1966, Mário Matsuda recebeu os ensinamentos de judô de seu sensei e de Miguel Suganuma, seu senpai e amigo de toda a vida.
Ainda jovem destacou-se como atleta, mas foi na transmissão do conhecimento recebido de Kihara e Suganuma que sensei Mário Matsuda escreveu uma história coroada pelo reconhecimento de centenas de faixas pretas que o veem como um dos mais queridos professores do cenário nacional.
A reputação de enérgico e exigente contrapõe-se à fama de ser um dos professores mais técnicos do Brasil, o mais amável, dedicado e paciente do País. Matsuda sensei não gostava de apontar erros. Ele preferia trabalhar com afinco, dias e dias, cada uma das deficiências dos judocas que examinava. Preferia corrigir erros e só parava quando percebia que haviam sido superados.
Carismático e querido por toda comunidade, Mário Matsuda percorreu todo o Estado de São Paulo e esteve em vários Estados fazendo aquilo de que mais gostava: disseminar seu conhecimento de judô e especialmente o kata.
Na avaliação de Sílvio Acácio Borges, presidente da Confederação Brasileira de Judô (CBJ), o legado deixado por Mário Matsuda é incomensurável.
“Falar sobre o sensei Matsuda não é algo muito fácil devido à simplicidade e à humildade em que sua trajetória nos tatamis se fundamentou. O professor Mário Matsuda sempre foi um professor que ofereceu muito mais do que pediu. Ele sempre se doou e proporcionou muito às pessoas que estavam ao seu redor. Ainda antes de ser presidente da Federação Catarinense de Judô, muitas vezes tive o prazer de recebê-lo em meu dojô, de poder recepcioná-lo no aeroporto e vivenciar muitas coisas, principalmente naqueles momentos fora dos tatamis. Além de ter sido uma pessoa muito especial, ele foi alguém que deixou uma contribuição muito grande para o judô brasileiro. Sua colaboração no desenvolvimento do judô catarinense é incomensurável, já no campo pessoal posso afirmar que agregou muito conhecimento técnico. Ele era uma sumidade em nage-no-kata, e durante anos veio a Santa Catarina com o intuito de aperfeiçoar o conhecimento dos professores nos fundamentos dos katas”, disse o dirigente nacional.
Dirigente experiente, Francisco de Carvalho, presidente de honra da Federação Paulista de Judô, destacou que o sensei Mário Matsuda foi um judoca que transcendeu sua época e a sensibilidade de seus pares.
“Conheço o Mário Matsuda desde a escola do Parque Dom Pedro, quando ele ainda competia. Era um judoca fortíssimo e possuía técnica refinada. Naquela época eu ainda era garoto, e lembro dele despontando nas competições. Num segundo momento recordo dele já trabalhando na Federação Paulista de Judô (FPJ), na qual também fez história. Apenas para as pessoas compreenderem a relevância e a consistência de seu trabalho, lembro que ele foi um dos pouquíssimos professores da área técnica que a FPJ registrou como funcionário. Com exceção dos professores Nubuo Suga e Luiz Tambucci, direta ou indiretamente, toda a geração de professores que fazem kata passou pelas mãos do professor Mário Matsuda. Até aqueles que não aprenderam com ele se rendiam ao conhecimento que possuía”, explicou o dirigente, que ainda destacou a simplicidade e a sensibilidade do professor kodansha 8º dan.
“Outras características marcantes do Mário Matsuda eram a humildade e a simplicidade. Durante um longo período foi responsável pelos exames de graduação da FPJ. Apolítico, ele não pedia ou questionava absolutamente nada. Contudo, um dia me chamou e disse que tinha um pedido, mas queria ser atendido e mostrou que alguns alunos eram reprovados nos exames de faixa devido ao nervosismo e porque havia muitos termos japoneses que não eram tão usados no dia a dia. Pediu que permitíssemos que todos os candidatos reprovados tivessem uma segunda oportunidade, ficassem treinando uma semana com ele e depois fossem reavaliados. Enfatizou que o certo seria corrigir aquilo que os candidatos não sabiam, e não reprovar sumariamente por desconhecerem parte dos katas ou termos em outro idioma. Concordei imediatamente, porque sempre achei que o Brasil precisa formar cada vez mais professores de judô para depois disseminarem a modalidade por todo o País, mas partiu dele a ideia de trabalhar as deficiências de cada judoca examinado, e isto só poderia partir de uma mente brilhante. Acatamos sua ideia de imediato e fazemos isto até hoje, graças à sensibilidade e à visão de um judoca que transcendeu sua época e seus pares”, explicou o dirigente paulista.
Durante muitos anos o professor kodansha 8º dan Miguel Suganuma foi senpai de Mário Matsuda no dojô do Parque Dom Pedro II. Profundamente abalado, Suganuma falou sobre a perda do grande amigo, companheiro de treino e eterno kohai.
“Foi uma grande perda para o judô paulista e brasileiro. Ele foi uma pessoa que se dedicou de corpo e alma ao judô, mais especificamente ao kata desenvolvido pelo professor Jigoro Kano. Com ele não tinha tempo ruim, sempre que precisávamos ele estava lá para ensinar a quem quer que fosse qualquer tipo de kata. Infelizmente ele estava muito mal de saúde, a doença tomou conta dele e ele nos deixou. Desfrutei sua amizade desde os tempos da academia do sensei Kihara. O Mário sempre foi um cara bacana e todos gostavam muito dele. Como judoca possuía uma técnica incrível e não usava força nenhuma. Muitas vezes seus adversários não tinham nem tempo de fazer o kumi-kata, e já estavam no chão, tal era a perfeição técnica que possuía na execução do seoi-nage, que era seu tokui-waza. Quando não dava certo, ele contra-atacava com um ko-uchi-maki-komi infalível, e tudo estava liquidado”, lembrou sensei Suganuma.
Alessandro Panitiz Puglia, presidente da Federação Paulista de Judô, falou sobre o legado deixado pelo sensei Matsuda no cenário nacional.
“O professor Mário Matsuda teve uma atuação extremamente significativa na FPJudô, e bastante expressiva no seleto grupo de professores que ampliaram a base técnica do judô paulista e brasileiro. Buscou difundir os ensinamentos do verdadeiro judô na capital, no interior e em vários Estados. Durante muitos anos esteve à frente do departamento técnico da FPJ, ao qual imprimiu inovações extremamente importantes. Foi responsável pelos exames de graduação e, se hoje temos um modelo para realizar nossos exames, é porque ele teve esta visão e sensibilidade”, disse.
O presidente paulista finalizou destacando a lisura e o comprometimento do professor Matsuda.
“Ele era uma pessoa que sempre agia com uma lisura tremenda, todos os judocas o conheciam e até mesmo os mais novos sabiam da importância de seu trabalho e lhe dedicavam grande carinho. Tive a sorte de ser aluno dele e guardo uma gratidão enorme por tudo que aprendi com ele. O professor Mário foi sempre um mestre extremamente capacitado e comprometido. Desejo que descanse em paz, e que Deus dê conforto a toda a família e aos amigos”, vaticinou Alessandro Puglia.
Aluno de Mário Matsuda, sensei Rioiti Uchida, 7º dan destacou pontos importantes de sua convivência com esta lenda dos tatamis.
“Um traço marcante da personalidade do sensei Mário Matsuda é que, enquanto aluno do mestre Yoshio Kihara, ele sempre admirou e reverenciou seu professor. Ele era uma pessoa grata que distinguia sempre os professores e amigos que lhe transmitiram conhecimento. Como seu aluno devo a ele muito do que aprendi na área técnica, no kata e em minha formação filosófica do judô. Ele era uma pessoa que respirava judô, e tudo que passava continha algo positivo. Comecei a praticar o kata com os professores Miguel Suganuma, Kameo Otagaki e Michiharu Sogabe, mas posteriormente acompanhei o professor Mário Matsuda nos cursos e o auxiliava inclusive em viagens pelo interior. Nas conversas mais particulares ele mostrava o outro lado do judô, a verdadeira filosofia do judô. Graças ao seu incentivo o Luiz Alberto e eu começamos a participar de torneios internacionais e ele jamais mediu esforços para nos orientar. Foram muitos fins de semana no Centro de Aperfeiçoamento Técnico para nos orientar. Ele ficava duas ou três horas nos orientando sem receber absolutamente nada por isto. Vencemos vários campeonatos mundiais graças ao comprometimento dele, e devo muito mesmo a ele. Lamentavelmente sofremos uma grande perda quando ele teve de se afastar, mas agora, com a sua partida, infelizmente o judô brasileiro perdeu um de seus maiores colaboradores”, lamentou Uchida.
Perfil
Filho de japoneses okinawanos, Mário Katsumi Matsuda nasceu em 7 de janeiro de 1945, em Miracatu (SP). Ingressou no judô em 1960 no dojô do sensei Yoshio Kihara, 9º dan, e rapidamente assumiu o posto de auxiliar de seu professor em vários dojôs da capital, até o momento em que abriu sua própria escola no bairro do Ipiranga, a Associação de Judô Monumento.
Posteriormente casou-se com Luzia Higa Matsuda, com quem teve os filhos Gustavo Matsuda e Rodrigo Matsuda. Ambos chegaram à faixa marrom e posteriormente seguiram outros caminhos.
Fazendo uma avaliação do judoca Mário Matsuda, seu filho Rodrigo Matsuda vê o pai como um homem de princípios.
“A maior virtude de meu pai dentro do cenário do judô foi ensinar o judô puro. Ele sempre cultuou as origens do judô. Como homem suas maiores virtudes eram a humildade, o caráter íntegro e a determinação. Ele dizia que, se fizéssemos o que amávamos, seríamos felizes. E ele estava certo e estava sempre de bem com a vida, apesar das adversidades”, lembrou Rodrigo.
Devido à diabetes, os problemas de saúde começaram por volta de 2006 e poucos anos depois se agravaram e interromperam abruptamente a trajetória de um dos judocas mais dedicados e comprometidos com os princípios éticos e filosóficos deixados por Jigoro Kano.
No dia 30 de dezembro sensei Matsuda faleceu e descansou da batalha que travou por mais de uma década. O professor Mário Matsuda deixa os filhos Gustavo e Rodrigo e a neta Naomi Matsuda, filha de Rodrigo Matsuda e Andreia Lumi Matsuda.
A missa de sétimo dia será realizada na Igreja São José, no bairro do Ipiranga, na Rua Brigadeiro Jordão, 560, no dia 7 de janeiro, às 19 horas.