Judô e autismo: uma luta inclusiva dentro e fora dos tatamis

Marcos Oliveira com Alice Cruz

O benefício do judô na vida de crianças e jovens com transtorno do espectro autista mostra-se evidente a cada treino devido ao grande aumento da capacidade psicomotora e da autoestima

Atividades Terapêuticas
22 de janeiro de 2021
Por ISABELA LEMOS e PAULO PINTO
Fotos DIEGO FORERO
Manaus (AM)

Arte centenária, o judô busca despertar a melhor parte do ser humano em sua mais pura essência. Com um código moral que contempla virtudes como o autocontrole, amizade, prosperidade e respeito mútuo, a arte marcial de origem japonesa tornou-se um esporte verdadeiramente útil para todos, devido não apenas à sua capacidade inclusão, mas também aos benefícios para a saúde que advêm da prática. Há dez anos o professor faixa preta san-dan (3º dan) Marcos Roberto Moura Oliveira ministra aulas de judô para crianças diagnosticadas com transtorno do espectro autista (TEA) e revela que cada aula é uma vitória embasada em descobertas e conquistas para os seus alunos e para ele.

Sensei Marcos com João Lucas Pimentel

Segundo a psicóloga e psicanalista Maria Paula de Souza, uma direção de trabalho clínico possível para os pacientes do espectro autista é o favorecimento do laço social e o incentivo à criação de vínculos. Marcos Oliveira afirma que os alunos desenvolvem melhor interação social e coordenação cognitiva e motora, o que gera grande autonomia em seu corpo.

“Além disso, o judô promove responsabilidade e disciplina, aspectos importantes. Para algumas crianças com TEA, avessas ao contato físico, o judô ajuda a vencer essa barreira, que inicialmente pode parecer impossível ou intangível.”

Maria Clara Marques Barbato jogando Marcos Oliveira

A experiência de dar aulas a jovens com espectro autista foi encarada inicialmente como um desafio. Em 2011, o professor san-dan trabalhava numa academia em que recebeu seu primeiro aluno especial, Rafael Braga, o qual recém havia sido diagnosticado com TEA aos 3 anos de idade. Apesar de naquela época ainda não ter nenhuma experiência, propôs-se a dar seu máximo e, desde então, vem estudando e entendendo melhor como se aproximar, abordar e ensinar jovens com espectro do autismo.

Desenvolvimento das habilidades psicomotoras

A psicóloga e psicanalista Maria Paula de Souza aponta que o corpo é tema central nas discussões acerca do tratamento das pessoas do espectro autista. “Há diversas formas de compreensão disso, vindas da medicina, psicologia e psicanálise. Esta última proporciona o entendimento de que a constituição psíquica do sujeito autista dá-se de um modo que o seu corpo é sentido de forma fragmentada, ou seja, não existe um esquema corporal total. Devido a isso, há maiores dificuldades relacionadas ao trato corporal.”

Rafael Braga encaixa um osae-komi no sensei

O judô (柔道), ou melhor dizendo, caminho suave, é uma arte marcial praticada como esporte de combate criada por Jigoro Kano em 1882. Seus principais objetivos são fortalecer o físico, a mente e o espírito de forma integrada, além de desenvolver técnicas de defesa pessoal. Por isso, o professor Oliveira cita alguns dos principais benefícios que a atividade física fundamentada na prática do judô proporciona.

“A prática do judô auxilia na melhora da coordenação motora grossa, que está ligada ao controle corporal do indivíduo, como correr, saltar, chutar, subir e descer uma escada. O ganho dessas simples ações impacta diretamente a questão social dessas crianças. Já quando falamos da coordenação motora fina – pegar um lápis, abrir uma garrafa ou até mesmo pegar um copo com água para beber, ações que parecem simples – há um grande grau de dificuldade para a maioria das crianças com espectro do autismo”, explica o sensei san-dan.

Luís Tadeu Siqueira numa competição de jiu-jitsu

Sua experiência deixou claro que cada criança responde de uma forma diferente. Moura Oliveira já teve alunos atendidos de forma individual e que, com o passar do tempo, integraram-se ao grupo com mais crianças. Ele relata que há pais que buscam aulas individuais para o filho, porém, o professor recomenda que a criança se insira no grupo em algum momento. Isso porque o ganho é muito maior do que numa aula individual. Os companheiros recebem muito bem esses alunos e estão dispostos a ajudar antes, durante e depois das aulas, sempre tentando interagir para fazer com que se sintam acolhidos. O mais interessante, segundo Marcos Roberto, é constatar que todos ganham e crescem com esta interação.

Atualmente, seu dojô em Manaus (AM), Escola de Lutas Sensei Marcos Roberto, atende a 50 crianças entre judô e karatê e 12 delas possuem espectro autista. Com a proposta de auxiliar e promover o desenvolvimento motor como um todo, o professor tem como principal preocupação respeitar a individualidade de seus alunos, não pensando somente em competições, golpes, projeções, imobilizações e finalizações. “Devemos proporcionar o máximo de experiências motoras para essas crianças, para que elas se tornem faixas-pretas de verdade, dentro e fora dos tatamis.”

O professor afirma que um dos seus principais focos é tornar a atividade prazerosa e divertida, estimulando os alunos a se expressarem por meio de um sistema de troca de figuras, gestos ou até mesmo com a fala. Para ele, cada pessoa tem sua particularidade e forma de comunicar-se. Atualmente, ele pretende iniciar com os alunos a orientação por meio de figuras, na qual eles vão realizar a ação depois de visualizar uma imagem, o que deverá ser uma experiência muito boa, com grande aceitação e compreensão.

Marcos Oliveira acompanha o treino de força de Maria Cara

Marcos Oliveira explica que é normal os alunos darem mais trabalho no começo, principalmente nas primeiras aulas. No entanto, quem dá mais trabalho, muitas vezes, são os pais. “Muitos deles chegam a questionar a capacidade das crianças. Depois que seus filhos conseguem realizar o movimento, eu sempre tento olhar para a reação dos pais e vejo um sorriso e um semblante de alívio.”

Ele deseja que os pais nunca deixem de acreditar no desenvolvimento psicossocial dos seus filhos, de apoiá-los e estar junto deles em todos os momentos. O professor aconselha que todos os colegas, tanto professores de judô quanto profissionais de Educação Física, não deixem de receber um aluno que apresente TEA. Deve-se tentar de todas as formas ajudá-los e inseri-los na comunidade, pois são seres humanos excelentes e diferenciados.

Lécia Joara de Lima Siqueira com o filho Luís Tadeu Siqueira Araújo no pódio

“Apoiem incondicionalmente esses alunos e seus pais. Procurem o conhecimento para ajudar porque trabalhar com eles está acima do técnico, está no interior de cada um. Temos de amar atender e entender esses alunos. Quando os pais vêm conversar, a alegria explícita no rosto deles evidencia que estou realizando um bom trabalho.”

Experiências marcantes para quem vê de fora

Os pais de João Lucas enxergam o judô como uma importante terapia, não apenas como um complemento. Eles indicam a prática para todas as crianças. Segundo eles, o judô é um esporte para todos, principalmente quando ensinado por um professor que percebe as dificuldades e habilidades de cada criança e que entende não só de autismo, mas de desenvolvimento infantil. “Ver a evolução do nosso filho e de seus amiguinhos ao longo deste tempo só nos traz alegria. As dificuldades aparecerão para todas as crianças, não só para as com TEA; e acreditamos que a prática do judô prepara nosso filho para a vida, de igual para igual, sem distinção”, diz a mãe Lorena Vasquez.

Marcos Oliveira e Alice Cruz fazem o rei inicial

“Nosso filho evoluiu muito e continua evoluindo ao longo destes três anos de acompanhamento. Os primeiros ganhos surgiram nas habilidades motoras: noção espacial, agilidade, elasticidade e força. Outro avanço importante foi a atenção ao próximo. No começo, ele se perdia nas explicações, mesmo se elas fossem rápidas e diretas. Quando ele começou a dar mais atenção ao que o sensei falava, observamos ganhos nas relações sociais com os amiguinhos. João Lucas sempre gostou dos colegas, mas nem sempre conseguia perceber quando eles não gostavam de alguma brincadeira”, conta a mãe de João Lucas.

Rafael Braga foi o primeiro aluno diagnosticado com TEA recebido pelo professor Marcos. Ele praticou o esporte por sete anos. Seu pai, juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região Amazonas e Roraima, Mauro Augusto Braga, lembra que buscou matricular seu filho no judô logo que recebeu o diagnóstico de TEA aos 3 anos de idade. Segundo ele, que já havia praticado o judô, o esporte, além de impor limite e disciplina, estimulou Rafael a interagir com outras crianças.

Maria Clara completando circuito no dojô da Escola de Lutas

“O judô é mais do que um complemento à terapia: ele é uma terapia. A atividade física, em especial o judô, deve ser considerada por todos os pais cujos filhos têm transtorno do espectro autista. O judô é imprescindível, como toda atividade física, ao desenvolvimento físico, motor e psíquico das crianças diagnosticadas no espectro. O judô trouxe ao meu filho uma força física que ele desconhecia, uma disciplina que não era possível impor e o mais difícil: a interação social. Eu recomendo com todas as minhas forças que encaminhem seus filhos a alguma atividade física, em especial o judô”, expõe Braga.

Rafael Braga, o primeiro aluno de Marcos Oliveira

Outras grandes virtudes aprendidas pelo filho foram o respeito às regras e ao professor. Quanto ao processo de adaptação do Rafael, num primeiro momento, foi individual. Em seguida, o professor Marcos o foi inserindo na turma regular para que começasse a interagir com outras crianças. “O processo de adaptação do Rafael foi muito intenso porque ele sempre recebeu muita atenção do professor, que explicou aos coleguinhas o que é transtorno do espectro autista e os levou a ajudá-lo a superar dificuldades. Felizmente houve uma grande sinergia e ele acabou sendo acolhido por toda a turma”, relata Braga.

Maria Clara fazendo o circuito no dojô da Escola de Lutas

A medicina formal ainda está muito distante das práticas alternativas e com isso inibe e restringe a possibilidade de socialização e desenvolvimento psíquico-motor, aumentando substancialmente o consumo de medicamentos que, além de não resolverem o problema, inibem uma socialização mais rápida e efetiva de crianças diagnosticadas com TEA e outras síndromes.

Bacharel e licenciado em Educação Física (CREF002196-G/AM), pós-graduado em atividade física aplicada a reabilitação cardíaca e a grupos especiais pela Universidade Gama Filho, o professor Marcos Roberto Oliveira desenvolve um trabalho pioneiro em Manaus, mas certamente dezenas de professores de judô, karatê, aikidô e taekwondo, entre outras modalidades, já fazem uso dos aspectos terapêuticos das chamadas artes marciais no Brasil. Essas práticas precisam ser identificadas, valorizadas e difundidas para que o judô e outras modalidades possam cumprir seu papel social exercendo o jita-kyoei e sei-ryoku-zenyo.

“Não tenha medo quando o perigo estiver à espreita, e seja cauteloso quando tudo estiver calmo.”
Jigoro Kano