Kannagara no michi – O fluxo de energia criativa

Kannagara é conhecido como o caminho dos kamis e, no xintoísmo, é a lei da ordem natural. Dizem que se alguém entender esse conceito, conhecerá o divino, o humano e o ideal como alguém deve viver © Kannagara / ChronoZoom / Nicholas Gee

Na confusão provocada pela sociedade moderna encontramos um homem limitado e distorcido em suas verdades, divorciado da natureza e hostil a ela e ao universo.

Por Wagner Bull
18 de abril de 2023 / São Paulo (SP)

A palavra Shinto é a composição de duas palavras: Shin, que significa espírito, e To, caminho. Shintoísmo significa o caminho dos Kamis (espírito, divindade, algumas coisa que pode causar deslumbramento e temor).

Desde o despertar da história, a humanidade tem tentado estupidamente lutar contra si mesma e contra sua própria natureza. Homem contra homem, grupos contra grupos e nações contra nações. Temos insistido em lutar por séculos. Estas guerras não têm acontecido simplesmente por interesses políticos ou econômicos, mas também por razões acadêmicas, ideológicas e religiosas. Estas guerras têm acontecido em direção completamente oposta ao desejo dos kamis, a presença manifesta da divindade no mundo.

Hoje vemos um mundo repleto de confusão, desunião e desespero. Mais de um terço da população mundial vive embaixo de uma ideologia que nega a existência dos kamis, do Divino (de Deus). Mas, mesmo neste mundo ateu, uma lacuna fica evidente: a necessidade de uma crença, especialmente entre os mais jovens.

Mas por que as coisas são assim? Porque a humanidade tem-se concentrado usando todo seu potencial no desenvolvimento material, deixando de lado o desenvolvimento da dimensão espiritual. E, para mudar esta situação, nós precisamos criar uma nova união das verdades e iluminações espirituais para realizar um renascimento da humanidade. Como nós podemos fazer isso? Nós somente poderemos fazer isso por meio da posse da sabedoria que podemos adquirir por meio da filosofia – e para os shintoístas filosofia, o amor à sabedoria, é o caminho a se seguir, a vontade dos kamis, o desejo do divino, de Deus.

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Nós identificamos no século XX a proclamação de que “Deus está morto”, feita por muitos filósofos e mesmo alguns teólogos. O verdadeiro valor da vida humana é distorcido pela ampla visão materialista da nossa civilização. Na confusão provocada pela sociedade moderna encontramos um homem limitado e distorcido em suas verdades, divorciado da natureza e hostil a ela e ao universo, se concentrando apenas na desesperada busca de falsos valores, plenos prazeres e ideologias bestiais e fanáticas.

Daishizen

Daishizen significa A natureza em toda a sua plenitude e grandeza – não simplesmente sua imensidão e sua qualidade estética, mas no sentido científico, sua imensidão e totalidade do qual somos partes minúsculas. Quando falamos de natureza, o que queremos dizer? Árvores e rios, montanhas e desfiladeiros, rochas e cascatas? É claro. Mas a biologia e a ecologia dizem como estas coisas vivem e se pertencem. São sistemas nos quais o homem vive mais como um mini-sistema. Mas nossa vida depende desse sistema mais amplo. Sem ele nós não existiríamos. O homem é parte da natureza, não importa o quanto ele tenta sofisticar ou ampliar sua autonomia. Os psicólogos dizem que, se não virmos suficientemente o verde da natureza, poderemos sofrer desvios. Se nós respirarmos ar poluído, ficaremos doentes. Se vivermos de forma não natural, comermos comida de má qualidade, tratarmos mal o nosso corpo, ficaremos doentes, com câncer, por exemplo, ou doenças cardíacas. A natureza e a nossa vida são uma coisa só. Essa é a perfeição do Daishizen.

Shihan Wagner Bull é shichi-dan (7º dan) © Global Sports

Atualmente existe um importante movimento no mundo que visa a valorizar a natureza. Mas seremos capazes de ver a natureza não como um objeto e sim como nós próprios, dela fazendo parte? Poderemos viver a natureza como processo, de vida e desenvolvimento? Poderemos falar de natureza como Deus, algo sagrado que está diante de nós? Se conseguir captar este significado, então o sentimento shintoísta está crescendo no leitor.

Kannagara

Kannagara é de difícil compreensão mesmo para os japoneses. Kannagara refere-se ao estado de harmonia entre os kamis, o homem e o daishizen em perfeita harmonia, paz em seu processo criativo de realização. Kannagara é a perfeição do puro e inquebrável fluxo de qualidade e excelência e amplidão por si mesmo. Kannagara, apesar de ser um aspecto do shintoísmo, não é uma visão do mesmo. Isto é, dizer que Kannagara reflete a verdade universal que todos percebem em seus sentidos profundos. Kannagara tenta expressar em sua forma mais pura a visão profunda das religiões naturais, o que a natureza ensina a respeito a nós mesmos.

Nós não podemos odiar o mundo em que vivemos, nem podemos continuar nos odiando. Não podemos ficar parados, balançando nossas cabeças em sinal de reprovação e ficar criticando uns aos outros.

Hoje a metade da população do mundo está morrendo de fome enquanto a outra metade está morrendo de asfixia por falta de valores espirituais. Um escritor japonês famoso uma vez disse que este século está experimentando a risada que chega ao final de uma civilização. E, de fato, nossa risada vazia, sem prazer espiritual, parece ecoar de forma selvagem neste vasto universo solitário. Deus-Kamis incorpora um mundo ideal onde o homem deve viver de forma balanceada entre os mundos material e espiritual. Mas, contrariamente, vivemos em um mundo de excessos. Existe pouco ou nada em termos espirituais em nosso dia a dia, mas apenas uma excessiva ânsia por coisas materiais, fundamentadas no isolacionismo desenfreado, estéril e absoluto.

Este artigo foi extraído do Manual Técnico de Aikidô, escrito pelo shihan Wagner Bull e lançado em 2008 pela Editora Ícone. Fundador do Instituto Takemussu, Bull é engenheiro civil, pós-graduado em administração de empresas pela FGV, autor de oito livros sobre aikidô e tradutor das principais obras publicadas em português sobre aikidô, judô e karatê. Em 11 de janeiro de 2009 recebeu o titulo de “shihan” – mestre, consignado pelo Aikikai Foundation, a organização matriz para o desenvolvimento e desiminação do Aikidô em todo o planeta. Wagener Bull é shichi-dan (7º dan) e o primeiro praticante sem ascendência japonesa no Brasil a receber tal graduação.

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