18 de novembro de 2024
Karatê: considerações sobre o ponto futuro
Em mais uma reflexão extremamente lúcida e objetiva sobre a prática das artes marciais, sensei Malheiros destaca a importância da qualidade da ação humana para atingirmos nossos objetivos
Por Fernando Malheiros Filho
21 de fevereiro de 2023 / Curitiba (PR)
Sempre que a reflexão envolve maior carga de abstração, a densidade do pensamento se incrementa. Surge o cuidado com as palavras para que o leitor possa ser endereçado adequadamente ao conteúdo desenvolvido.
O raciocínio parte de evidência deveras simples: toda ação humana é antes um pensamento. Mesmo quando agimos por reflexo – até os mais primitivos –, há, na reação, elemento mental. Mais ainda se o reflexo for condicionado, ou treinado, que depende de anos de exercício para torná-lo disponível a quem pretender utilizá-lo quando necessário.
As ações humanas, mesmo as mais cotidianas, têm sempre um objetivo, seja moral, seja no tempo ou no espaço. Se pretendemos erguer o braço – ou arremessá-lo, como quando se golpeia –, seja qual for seu objetivo, este pertencerá à ação. Atingir o objetivo projetado – pensado ou por reflexo – dependerá da qualidade da ação humana e, no início, do projeto mental que a antecede.
Em outras palavras, entre pensar e executar situa-se o abismo que nos separa do êxito, e até da glória, ambos reservados apenas àqueles que, por determinação ou talento, refinaram sua ação a ponto de torná-la mais eficiente. Assim em todas as atividades humanas, até nas mais complexas, como nas relações interpessoais, nas profissões e nas tantas hipóteses em que nos dedicamos a tarefas não envolvidas com o resultado econômico. Não são diferentes as artes marciais, mas nelas as peculiaridades poderão aperfeiçoar o agente, quer para o treinamento que lhes é próprio, quer para os demais aspectos de sua vida.
O ponto futuro surge, nessa linha de raciocínio, como elemento essencial a qualquer execução. Pode ele ter representação temporal ou espacial, mas também no resultado que se pretende obter. Sua projeção mental, e a qualidade em fazê-la, terá significância no resultado. Em parte, é o que se chama de Mikiri (見切り), onde Mi (見) é ver, ou visão, e Kiri (切) é a ação de cortar, ou corte.
“Jamais será possível alcançar o objetivo se não encontrarmos o caminho para nele chegar. Em geral, a isso se dá o nome de técnica, que significa fazer o mais com o menos ou encontrar o melhor resultado com o menor esforço.”
Sempre agimos de acordo com a posição da mente. Essa é a razão pela qual todas as culturas superlativam o estudo da mente e a condição mental, em especial a cultura do Oriente, ciente de que, nos seus milênios de existência, ser a mente a matriz de todas as ações.
A existência de um ponto futuro representa o reconhecimento das etapas antecedentes para alcançá-lo. O amadurecimento ensina que não basta desejar para que se corporifique o resultado. É necessário conquistá-lo, e a conquista exige método, como método é o Budô.
Jamais será possível alcançar o objetivo se não encontrarmos o caminho para nele chegar. Em geral, a isso se dá o nome de técnica, que significa fazer o mais com o menos ou encontrar o melhor resultado com o menor esforço.
Entre o ponto de partida e o ponto futuro está o caminho a ser trilhado. Projetar o futuro passa necessariamente por encontrar o caminho (Dô).
Concretamente, qualquer técnica, golpear ou defender, materialmente ou em metáfora, representa a ação corporal que separa a inação do objetivo. Entre o momento em que a mão (ou o pé) se acha inerte e aquele em que prorrompe no alvo, concreto ou imaginário, transcorreu fração mínima de tempo para o praticante treinado, mas naquele átimo deu-se a ação, que poderá ser frustrada se o pensamento que a motivou não tiver sido de boa qualidade.
A concentração mental no ponto futuro faz com que a mente procure o caminho em alcançá-lo. Esse o desafio.
Logo o praticante percebe que o mero desejo de fazê-lo não basta – aliás, atrapalha, e muito – à ação para atendê-lo. A frustração decorrente da ação mal executada pode representar impedimento intransponível; faltará, cada vez mais, ao agente, confiança e afinamento mental para que o objetivo seja finalmente encontrado. A mente preguiçosa logo desistirá.
Em caso de persistência no treinamento, o praticante perceberá que não lhe restará alternativa senão estudar em pormenor a natureza do movimento, as forças que o governam e as etapas que o compõem, buscando encontrar o melhor caminho na sua execução (técnica).
O desejo levanta-se como inimigo a ser derrotado. Querer não é poder. O poder, em qualquer de suas dimensões, passa por fazer o certo no momento certo. Em qualquer de suas grandezas, o certo é volúvel, flutuante, elástico. A mente dedicada a identificá-lo somente terá êxito se vibrar no mesmo ritmo em que ele se apresenta em cada momento.
“Entre o ponto de partida e o ponto futuro está o caminho a ser trilhado. Projetar o futuro passa necessariamente por encontrar o caminho (Dô).”
Esse caminho é penoso e demorado. A mente é rebelde, não aceita pacientemente ser domada. Quer logo experimentar o gosto do êxito, ou desistir.
Bem-aventurados aqueles que não desistem; persignam-se e seguem adiante. Percebem que o esforço em purgar do movimento tudo que não é necessário, depurando-o na pureza de sua essência, caminha em paralelo com a mesma condição em relação à alma.
Por isso o velho, o professor e o mestre ganharam importância no processo civilizatório. Já cansados, não conseguem mais exigir de seus músculos e ossos a execução escorreita do movimento, mas – alguns – são capazes de identificar o ponto futuro e de apontá-lo ao praticante jovem com a mente embaçada pela energia em excesso de que seus corpos são dotados.
É demorado o andar do conhecimento, e paciente deve ser quem o busca. Mesmo os movimentos que se podem executar em frações mínimas de tempo devem ser mapeados, separados em seus elementos e porções, depois juntados em sua unidade para experimentação de sua eficiência.
Desaventurados serão aqueles que, por impulso, tentarem ser o que somente se é pela reflexão e absorção do que já sabiam seus anteriores. Olhar à frente talvez nos tenha feito bípedes; e é esse olhar para o ponto em que almejamos chegar que nos permitirá fazê-lo.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.