Karatê-dô: conhecimento em camadas

A makiwara é utilizada como instrumento de treino em vários estilos de karatê. Sua origem remonta basicamente à ilha de Okinawa, utilizada como um método adicional de condicionamento físico © Steel Mace Karate

O karatê-dô pode ser estudado sob vários aspectos, sendo particularmente relevante entender o foco de sua aplicação e as distinções, conceituais e filosóficas, que haverá de despertar

POR FERNANDO MALHEIROS FILHO
17 DE MAIO DE 2022 / CURITIBA (PR)

Nenhuma área do conhecimento humano permite apreciação unitária. É próprio à epistemologia o ponto de vista do observador sobre o objeto observado. Hoje se sabe que, no espaço quântico e das dimensões subatômicas, as partículas reagem ao observador, de modo a ser possível dizer que a ninguém é dado conhecer a verdade absoluta: o simples ato de tentar decifrá-la a modifica.

Não é diverso quando o observador, ou mesmo o estudioso, dedica-se ao estudo de sua área de interesse intelectual: haverá de emprestar às suas constatações o que lhe é próprio, sua maneira de ver ou interpretar.

Como todos os campos do conhecimento, também o karatê-dô deve ser estudado por várias óticas e compreensões, sendo particularmente relevante ao observador, praticante, professor ou estudioso entender o foco de sua aplicação e as distinções, conceituais e filosóficas, que uma ou outra das compreensões poderão despertar.

São múltiplas as possíveis camadas que nem sempre obedecem aos mesmos pressupostos de funcionamento, por vezes distanciando-se umas das outras, até o limite do paradoxo, dependendo da profundidade que à compreensão se puder emprestar.

A primeira linha de compreensão, e provavelmente a mais assídua, situa-se no aspecto educacional, quando o aprendizado do karatê-dô obedece a método consagrado pelo tempo e pela experiência, reivindicando a relação professor-aluno no dojô.

Na perspectiva da ação comunitária cuida-se da mais importante expressão da arte que, confraternizando o velho com o jovem, permite a este último abeberar-se da experiência e da sabedoria acumuladas pelo primeiro. Nessa camada, há dois pressupostos fundamentais, nem sempre presentes: o aluno que deseja absorver o conhecimento e o velho (ou mais velho) sábio capaz de transmiti-lo.  Desde logo expurga o aluno que vai em busca da afirmação pela violência e do velho que, apesar do tempo, não acumulou a necessária sabedoria capaz de elevá-lo à condição de mestre.

Difere, no entanto, o aluno violento do professor insciente. O aluno poderá ser reconduzido ao caminho (Dô), enquanto há pouco por fazer com a ignorância do velho.

Na segunda linha está o karatê esportivo, que ainda aspira por sua inclusão definitiva nos Jogos Olímpicos, tão logo superadas as enormes divergências entre as múltiplas associações que reclamam sua representação.

Ainda que, nesse plano, seja possível transpor o aluno para o competidor e o mestre para o treinador, os resultados são muito diferentes.  É certo que as derrotas ensinam mais do que as vitórias, mas a intensão de vencer o jogo dá à essa expressão da arte peculiar conformação.

Os valores explorados pelo competidor (e seu treinador) são diversos daqueles almejados pelo aluno com seu mestre. Tudo orbita a arbitragem e o outro competidor. A estratégia não visa à obtenção do melhor resultado da contenda com relação ao adversário, mas à perspectiva do árbitro encarregado de verificar a pontuação.

O que o árbitro não vê, ainda que o sinta o adversário, não está na contenda. É preciso praticar aquilo que pontua, e não aquilo que funciona em termos de defesa pessoal, embora se estabeleça certa intersecção entre um e outro dos gestos, quando a aplicação de golpes pontuáveis são também próprios a desarticular a agressão para a qual se destina a defesa pessoal.

O terceiro plano situa-se justamente na defesa pessoal, como se viu algo diverso da luta por pontos e que demanda posturas mentais diferentes e perspectivas próprias, valendo para esta a eficiência pura de cada movimento, independentemente de interpretações que ele possa revelar. O único árbitro da defesa pessoal é o outro e sua suscetibilidade física e psíquica.

Nesse espaço as formulações filosóficas ganham outro aspecto, na busca da verdade pura, ou pelo menos daquilo que mais próximo dela podemos chegar. O estudo é mais profundo e concludente. Persegue-se a percepção dos movimentos e sua inteireza; o estudo das leis físicas, que nem sempre se associam com a crua intuição; a percepção dos aspectos antropomórficos; o estudo da evolução da espécie e a natureza dos movimentos, como também das partes do corpo e suas funções.

Ainda nesse plano, a pureza da arte a eleva a essa condição, misturando-se a expressão estética com a funcional. O gestual belo ganha dimensão filosófica e já é possível entender os fundamentos dos valores estéticos.

No quarto plano, a transcendência da prática alcança a prospecção do ser (praticante) em si mesmo. O gesto e o movimento estão a serviço de o praticante conhecer a si próprio, na interação com o meio e com as forças que o presidem, tanto os movimentos quanto as emoções. Da prática caminha-se às grandes indagações existenciais. O praticante aproximar-se-á de sua própria natureza revelada pela eleição do caminho (Dô). Compreenderá e verá com outras lentes a si mesmo e ao mundo que o cerca. Saberá de sua finitude, e valer-se-á da sabedoria para contrapô-la à velhice. Conhecer-se-á.

Finalmente, no quinto plano, o praticante estará apto a conhecer sua própria mente, estudando e induzindo os estados mentais, fazendo deles ferramenta para existir. Explorará o Shoshin (mente de principiante), o Zanshin (mente alerta); o Mushin (não-mente), o Fudoshin (a raiz ou o equilíbrio) e o Senshin (a transcendência, a iluminação). Mas isso é matéria para outros escritos.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.