18 de novembro de 2024
Karatê-Dô: interrupção ou continuidade?
Instintivamente nos contraímos diante do perigo, ainda mais em se tratando de perigo físico, como o ato de lutar, quando poderíamos retirar maior proveito do relaxamento e da fluidez que ele traz
Por Fernando Malheiros Filho
12 de dezembro de 2022 / Curitiba (PR)
Na prática do karatē-dō, por sua origem teosófica e cultural, antes de tudo, são relevantes os estados mentais. A indução no aluno de percepções sensoriais será mais relevante do que sua destreza física, que depende da idade, do fenótipo, do tempo disponível à prática, da destreza inata e mesmo do compromisso entre o praticante e seu caminho. Haveremos de encontrar, nessa enorme gradação, praticantes com diferentes graus de habilidades, desde o competidor profissional – que é minoria – até a imensa maioria de dedicados bissextos, que encontram no “caminho” o valioso instrumento de autoconhecimento e de saúde corporal e mental.
A construção de estados mentais, ainda que possível a qualquer praticante, independentemente de sua expertise técnica, depende da formação filosófica que nele for empregada. Parte-se do princípio de que os estados mentais, e propriamente o pensamento induzido, estão diretamente relacionados com a ação humana que deles deriva. Disso resulta que a qualidade do ato (mesmo que a simples execução de técnica) está vinculada à qualidade do pensamento.
Por isso a indução dos estados mentais é de enorme relevância em qualquer atividade humana, mormente no karatê-dô, que traz consigo a pretensão de atuar no fundamento do ser, preparando-o para os demais aspectos (duros ou prazerosos) da vida.
Nesse campo, o uso das palavras e a busca da exatidão semântica ganham importância transcendente, quando se inicia o questionamento proposto pelo título que encima este texto. Afinal, a palavra exata para o movimento, no seu curso e no final de sua trajetória, é “ruptura” ou “continuidade”?
“A indução dos estados mentais é de enorme relevância em qualquer atividade humana, mormente no karatê-dô, que traz consigo a pretensão de atuar no fundamento do ser, preparando-o para os demais aspectos da vida.”
Mesmo que muitas respostas pareçam corretas, podendo o tema ser abordado por diferentes pontos de vista, a ideia de ruptura não alimenta coerência epistemológica com a prática marcial. Ruptura e morte são próximas e, muito embora na morte encontremos o ponto de partida de muitas reflexões sobre a vida, a morte é um destino a ser evitado, embora saibamos de sua inevitabilidade. Enquanto for possível a vida, haverá de ser preservada e desfrutada (no ponto, remete-se à discussão, em todo o mundo ocidental, acerca da eutanásia, quando os aspectos inerentes à vida deixam de existir no ser vivo, que somente sobrevive à custa de manobras da medicina). Como a ruptura importa em corte, desaparecimento, inexistência, quando avaliamos o movimento a partir dessa perspectiva geramos tensão, contratura, retração, diminuição, encolhimento, retraimento, redução, compressão ou estreitamento. O movimento praticado com esse modelo mental resultará em inevitável “fretamento” e na contenção da cinética produzida originalmente, com resultado em impacto de menores dimensões, justamente o oposto do que pretende quem produz o movimento.
Ao contrário, a continuidade está bem relacionada com a noção de caminho (Dō), próprio ao desenvolvimento do karatē-dō, e de suas origens técnico-culturais, devendo representar elemento de indução de estados mentais a ser considerado no ensinamento da técnica, sob pena de induzir o praticante em contrações musculares desnecessárias, enorme desperdício de energia (corporal e cinética).
A explicação da teoria do movimento deverá estar vinculada à noção de continuidade, por isso a preocupação com o imediato relaxamento logo depois da tensão (mínima), jamais sob a perspectiva de que esta vai resultar na interrupção, mas no constante movimento de contração e expansão, sístoles e diástoles próprias ao funcionamento do corpo humano.
A mente deverá compreender, a partir dos estados mentais respectivos, essa peculiaridade estrutural à prática fluida, sem a qual de prática exata e verdadeira não poderemos tratar.
Na compreensão desse fenômeno parece difícil encontrar as origens do comportamento que leva ao movimento de ruptura, com todas as tensões que ele representa, talvez decorrente dos movimentos defensivos incrustados na seiva evolutiva que nos forma. Nos milhões de anos em que habitamos esta terra fomos predominantemente presa de grandes predadores, somente invertendo essa dramática equação em tempos muito recentes para fins evolutivos. Ainda guardamos nos genes que nos formam as reações instintivas de fugir ou contrair.
A despeito de efetivamente verdadeira essa mera especulação teórica, o certo é que instintivamente nos contraímos diante do perigo, ainda mais em se tratando de perigo físico, como ocorre com o ato de lutar, quando poderíamos retirar maior proveito, para defesa da integridade física, do relaxamento e da fluidez que dele resulta, produzindo movimentos mais ágeis, com velocidade final mais intensa – algo que a física newtoniana nos explica por meio da equação da energia cinética: massa x velocidade2/2.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.