Karatê-dô, karatê esportivo e karatê olímpico

O desporto deve ser entendido em seus limites, dentro dos quais não cabe o Budô © Kenwa Mabuni

As artes marciais sofreram grandes mutações em seus propósitos ao longo dos séculos e, mais recentemente, com sua difusão planetária e seu enraizamento no desporto

Por Fernando Malheiros Filho
16 de gosto de 2022 / Curitiba (PR)

Masatoshi Nakayama (1913-1987), aluno de Gichin Funakoshi e do seu filho Gigo, fundou a Japan Karate Association (JKA) em 1949 © Arquivo

O debate é acérrimo e desperta paixões, nem sempre a serviço da razão. Em célebre entrevista a Randall G. Hassell, o mestre Masatoshi Nakayama, em 1982 – fazendo, portanto, 40 anos – tratou do tema. Lembrou que o professor Gichin Funakoshi (1868-1957) jamais revelou sua posição sobre as competições, mantendo certa reticência. Nakayama, ainda assim, sustentou que todo o treinamento e desenvolvimento do karatê-dô na JKA obedecia, com exatidão, aos postulados do mestre okinawense, assim como as competições que se consagraram após o seu falecimento, em 1957.

Naquela entrevista, procurando mostrar sua visão sobre o fenômeno no qual se envolveu a vida toda (faleceria cinco anos depois, em 1987), Nakayama salientou as dificuldades de adaptação da prática, concebida originalmente para defesa pessoal, que se abeberava das circunstâncias culturais na qual vicejou, para o mundo internacionalizado, de cultura transnacional, em especial os valores cultivados pelo meio esportivo, de preservação do praticante, de obediência às regras previamente estabelecidas, e tudo mais que o esporte deveria significar.

Nakayama também era portador de algum ceticismo, embora se tenha rendido à evidência de que somente o esporte poderia agregar multidões e difundir a arte em todos os quadrantes do planeta, atraindo interessados em pelo menos conhecê-la, que, sem ela, se perderiam na densidade filosófico-prática do modelo original do Budô.

Ainda naquela entrevista, Nakayama se antecipava à elevação do karatê esportivo à condição de esporte olímpico, entendendo tratar-se de sucessão natural, diante da relevância dos Jogos Olímpicos para o mundo esportivo e para a civilização.

A posição de Nakayama, sempre lembrando os preciosos ensinamentos do mestre que o orientou, era também de algum ceticismo. Lembrou do judoca holandês Anton Johannes Geesink, o primeiro não japonês a vencer um campeonato mundial de judô, em 1961, depois medalha de ouro (categoria absoluto) justamente nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964, ocasião em que o judô foi elevado à condição de esporte olímpico. Geesink, na época, questionado sobre as razões de seu sucesso, teria respondido que os japoneses se preocupavam com o esporte, preocupação que nunca lhe ocorreu, simplesmente treinava o judô desenvolvido pelo professor (Jigoro) Kano.

Os mestres Nakayama e Funakoshi não tinham solução terminada para o dilema, nem é possível tê-la. Deixaram para os pósteros apenas as dúvidas. Afinal, o desenvolvimento cultural é entidade viva, que muda de forma com o tempo, ao sabor das circunstâncias.

Masatoshi Nakayama e seu mestre Gichin Funakoshi © Arquivo

Ainda que os mestres não pudessem antecipar as tantas dúvidas que o futuro iria despertar, sabiam que elas sobreviriam; que a densidade do Budô que enraíza o karatê-dô não se dissiparia com facilidade aceitando o modelo esportivo sem inúmeras e, por vezes, insolúveis dificuldades.

“O desenvolvimento cultural é entidade viva, que muda de forma com o tempo, ao sabor das circunstâncias.”

A principal dificuldade, já manifestada pelo mestre Nakayama na entrevista a Hassell, era o efeito corruptivo das competições sobre os praticantes em relação aos valores tradicionais. O hedonismo do vencedor poderia sobrepairar ao entendimento sereno da existência e da condição humana própria ao budoka. Valorizar o vencedor casual em detrimento do praticante assíduo significaria inversão de valores a ser evitada. O competidor não haveria de ser aquele que mais se beneficia da prática, embora acabasse sendo o mais visível. A vocação educacional deve estar acima de outros aspectos; e a educação é para todos, enquanto as competições pertencem àqueles que têm em seu favor as vantagens genéticas que lhe garantem melhor desempenho físico.

No plano técnico não foram menores os efeitos das competições. Disputas exigem regras, e estas são concebidas e impregnadas pelos valores de seu tempo. Como conciliar técnicas desenvolvidas para lesar (ou matar) o contendor com a asséptica prática do desporto?

É natural que os praticantes e dirigentes de qualquer modalidade esportiva aspirem sua divulgação e desenvolvimento, desejando que aquele esporte possa ter lugar no pódio olímpico © Dok. NOC Indonésia

Além disso, as técnicas originais foram elaboradas para atuar em média e curta distância, o quanto possível sem despertar a atenção do contendor, sendo de difícil visualização, algo impróprio ao desporto, que exige a arbitragem e a percepção da TV e dos árbitros dos atos ou movimentos que podem gerar pontuação.

“O desporto deve ser entendido em seus limites, dentro dos quais não cabe o Budô que, longe dos insondáveis enigmas que, com razão, o nome inspira, representa método de formação de seres humanos. Em uma única palavra: educação.”

Como resultado disso, paulatinamente, mais ou menos na dependência das regras e do treinamento dos árbitros, as competições marciais foram tomando distância da arte original, seus fundamentos e objetivos. A técnica pontuável – e nem poderia ser diferente – não haveria de ser aquela efetiva, capaz de gerar dano no alvo, mas aquela que pudesse ser vista pelo árbitro.

Também era necessário proteger os competidores, estabelecendo-se pesadas penalidades para os excessos. Em resumo: o lutador vitorioso na competição haveria de empregar no “jogo” em que se envolveu a negação da arte original. Criaram-se movimentos de que antes jamais se cogitou, com aspectos exteriores acentuados em nome da visibilidade: o principal móvel do competidor que tem por propósito “convencer” o árbitro de sua vitória.

Esse paulatino afastamento das origens, nas palavras do judoca holandês Geesing, vem cobrando seu tributo, que parece ainda mais oneroso nesse momento em que a discussão do olimpismo ainda está em pauta.

A inversão de valores era inevitável. Todo o mecanismo cultural tem suas raízes sistêmicas. Desaparecido o ambiente em que foi gerado, tende ao desaparecimento ou adaptação, sendo provável sua malversação, o que há de ser evitado, preservando-se, quando possível, os valores em que se funda.

É natural que os praticantes e dirigentes de qualquer modalidade esportiva aspirem sua divulgação e desenvolvimento, desejando que aquele desporto possa ter lugar no pódio olímpico, mas quando aquele desporto é muito mais do que isso e a “esportivização” poderá corrompê-lo, o cuidado é necessário.

O gigante Anton Geesink, o judoca holandês vence uma luta nos Jogos Olímpicos de Tóquio (1964) com osae-komi © ANP

Antes de tudo, as artes marciais, em especial as japonesas, sofreram grandes mutações em seus propósitos ao longo dos séculos da história nipônica e, mais recentemente, com sua difusão planetária, com o enraizamento nos locais e culturas destinatários e no desporto.

O desporto deve ser entendido em seus limites, dentro dos quais não cabe o Budô que, longe dos insondáveis enigmas que, com razão, o nome inspira, representa método de formação de seres humanos. Em uma única palavra: educação.

Essa a principal vocação do karatê-dô que, a despeito de sua conversão em desporto (para poucos atletas e deleite do público), merece atenção dos praticantes e, principalmente, dos professores, a quem se confia a formação das gerações posteriores. Cabe a estes a constante revitalização (e pesquisa) dos postulados de Azato, Itosu, Funakoshi, Mabuni e tantos outros. Devemos lutar para não os esquecer.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.

Nascido na ilha de Okinawa em 10 de novembro de 1868, Gichin Funakoshi foi mestre de Okinawa-te e o principal divulgador da arte marcial pelo arquipélago japonês. Faleceu em 26 de abril de 1957 e deixou como legado o estilo de Karatê Shotokan © Arquivo

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