Karatê e o COI: hora de repensar a exclusão?

Tao Yiwei (CHN) exibe precisão e elegância na disputa de kata no Campeonato Asiático de Karatê © Instagram

Segregação de atletas, concentração de poder e contradições éticas colocam em xeque o compromisso do COI com a diversidade e os valores olímpicos no karatê.

Por Farzad Youshanlou / SportsIn
Curitiba, 5 de agosto de 2025

Em agosto de 2021, Liviu Crisan, presidente da União Mundial das Federações de Karatê-Do (WUKF), encaminhou uma carta aberta a Antonio Espinós, presidente da Federação Mundial de Karatê (WKF), com cópia para o então presidente do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach. A mensagem, respeitosa e propositiva, trazia uma preocupação legítima: embora tenha elogiado o desempenho dos atletas da WKF nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, Crisan manifestava inquietação diante da exclusão do karatê do programa olímpico de Paris 2024 e, com isso, da incerteza quanto ao futuro da modalidade dentro do Movimento Olímpico.

Liviu Crisan, presidente da World Union of Karate-Do Federations (WUKF) © Facebook

Mas a exclusão do karatê dos Jogos Olímpicos é apenas a face mais visível de um problema muito mais profundo. Para os Jogos Olímpicos da Juventude de 2026, a WKF recebeu do COI a autoridade exclusiva para representar a modalidade. Isso significa que apenas atletas filiados à WKF — via suas respectivas federações nacionais — poderão participar. Na prática, milhões de jovens praticantes que treinam e competem sob outras entidades, como a WUKF, ITKF, IKO e demais organizações, estarão automaticamente excluídos. Talento, dedicação e mérito esportivo não bastam: a filiação burocrática tornou-se o novo critério de elegibilidade.

Gilberto Gaertner, presidente da International Traditional Karate Federation – ITKF Global © Global Sports

Uma carta de igualdade, mas um sistema excludente

A Carta Olímpica é clara ao estabelecer seus compromissos com a equidade: ela afirma que a prática esportiva é um direito humano e que todos os atletas e organizações devem ter acesso igual aos Jogos Olímpicos. Esses princípios, no entanto, contrastam com a estrutura de exclusão vigente no karatê olímpico.

“A prática do esporte é um direito humano. Todo indivíduo deve ter a possibilidade de praticar esporte, sem discriminação de qualquer tipo.” – Princípio Fundamental 4

“Todas as organizações esportivas e atletas devem ter acesso igual aos Jogos Olímpicos, sem exclusão injusta.” – Regra 19

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À luz desses princípios, a atual estrutura levanta sérias questões éticas. O reconhecimento exclusivo da WKF como representante do karatê criou um modelo de governança que marginaliza a maioria dos praticantes ao redor do mundo. Comunidades inteiras de atletas são excluídas, não por falta de habilidade ou preparo, mas por estarem vinculadas a uma federação “não reconhecida” — muitas vezes ativa, legítima e fortemente enraizada em sua região.

Essa forma de exclusão estrutural penaliza atletas jovens por pertencerem à federação “errada”, ignorando a pluralidade de estilos e sistemas historicamente associados ao karatê tradicional.

Antonio Espinós, presidente da World Karate Federation (WKF) © Divulgação

De quem é a responsabilidade?

Diante desse cenário, é legítimo questionar o papel do Comitê Olímpico Internacional. Como uma organização que se posiciona publicamente em defesa da igualdade, da inclusão e da justiça, o COI não poderia fomentar — mesmo que de forma indireta — um modelo monopolista que divide a comunidade global do karatê.

Ao reconhecer apenas a WKF, o COI impôs um padrão único de governança, estilo técnico e visão de mundo sobre uma arte marcial rica em diversidade cultural e filosófica. Pior: essa centralização resultou em casos documentados de atletas banidos de competições por terem participado de eventos fora do circuito WKF — uma medida que contradiz o espírito olímpico.

Kancho Shokei Matsui, presidente da IKO – Kyokushinkaikan © Andrzej Zacharski

É importante frisar que esta crítica não se dirige a pessoas específicas dentro do COI, mas à necessidade institucional de repensar sua própria coerência. A recente mudança de liderança no Comitê representa uma rara oportunidade para rever estruturas consolidadas e avançar rumo a um sistema mais inclusivo, representativo e democrático

Um novo capítulo olímpico para o karatê?

Com uma nova direção à frente do COI, surgem novas possibilidades. O Comitê tem em mãos a chance histórica de corrigir o rumo e construir um futuro mais democrático para o karatê, ouvindo outras federações internacionais, abrindo sistemas classificatórios e reconhecendo a verdadeira diversidade da modalidade no mundo.

Milhões de jovens karatecas não deveriam ser excluídos do sonho olímpico por questões meramente burocráticas. O Movimento Olímpico deve ser um espaço de acolhimento e superação — não de exclusão e segregação.

Os Jogos Olímpicos da Juventude de 2026 podem se tornar um marco. Mas, para isso, o COI precisa colocar seus princípios em prática e optar pela inclusão, em vez da exclusão. Essa é a hora de repensar. E de agir.

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