Karatê tradicional, do sonho de mestre Nishiyama à consolidação da ITKF

Hidetaka Nishiyama jamais se rendeu aos apelos para descaracterizar o karatê que idealizou, e a ITKF segue até hoje o estatuto aprovado em sua fundação, em 1990

História
3 de setembro de 2020
Por PAULO PINTO 
Curitiba – PR

Nascido em 10 de outubro de 1928, em Tóquio, Hidetaka Nishiyama, no dia em que completou 5 anos, 5 meses e 5 dias, foi levado por seu pai, seguindo a tradição japonesa, a um professor de kendo, arte marcial desenvolvida a partir das técnicas de combate com espadas.

Masatoshi Nakayama, o criador e líder da JKA (1913 – 1987) – Foto Warrener Entertainment

Em 1943, quando o mundo estava mergulhado na 2ª Guerra Mundial, o jovem Nishiyama, intrigado com as técnicas de combate desarmado, começou a estudar karatê com o renshi Gichin Funakoshi, o principal divulgador do karatê no arquipélago japonês que fundou a principal escola da modalidade em Tóquio. Sensei Funakoshi deixou como legado para a humanidade o estilo de karatê Shotokan.

Nishiyama graduou-se em economia na tradicional Universidade de Takushoku de Tóquio em 1951. No ano de 1957, com a ajuda de seu tio advogado e do amigo Masatoshi Nakayama, entre outros colaboradores, constituiu a Japan Karate Association (JKA), reconhecida pelo Ministério da Educação do Japão em abril daquele mesmo ano.

Em 1961 Nishiyama mudou-se definitivamente para Los Angeles, onde fundou a All American Karate Federation (AAKF). No ano 2000 recebeu do imperador Akihito a Ordem do Tesouro Sagrado, em cerimônia no palácio imperial de Tóquio, em reconhecimento pela vida dedicada à disseminação da cultura japonesa.

Gichin Funakoshi, o principal divulgador do karatê no arquipélago japonês – Foto SKIF Brasil

AAKF e IAKF (1961 a 1985)

Em resposta ao crescente interesse global pelo karatê, e com a perspectiva de reconhecimento pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), em 1975 realizou-se em Los Angeles (EUA) o primeiro campeonato mundial de karatê, uma iniciativa conjunta da AAKF e da JKA com a participação de várias delegações internacionais. A AAKF adquiriu então projeção global e transformou-se na International Amateur Karate Federation (IAKF).

Esse campeonato mundial foi repetido sucessivamente em Tóquio, em 1977, em Bremen (Alemanha), em 1980, e no Cairo (Egito), em 1983.

A imperatriz Michiko com o imperador Akihito, que em 2000 concedeu a Nishiyama a Ordem do Tesouro Sagrado, Raios de Ouro com Roseta – Foto Reuters / Toru Hanai

Imposições do COI levamao surgimento da ITKF

Os burocratas do COI exigiam um alto preço para o reconhecimento formal do karatê: a alteração de regras fundamentais, em nome da segurança e da beleza plástica.

Sensei Nishiyama nunca abriu mão de preservar a verdadeira técnica e o espírito do karatê, mantendo seu principal elemento: o golpe único e definitivo (todome), suficientemente poderoso para incapacitar o oponente.

A organização chamada World Union of Karate Organizations (WUKO) aceitou as imposições do COI. Surgiu então o chamado karatê esportivo.

Sensei Nishiyama foi inflexível. “Eu jamais aceitaria o desvirtuamento da nossa arte.” Nascia assim o karatê tradicional. A IAKF foi renomeada em 1985 e passou a ser denominada International Traditional Karate Federation (ITKF).

Hidetaka Nishiyama foi aluno direto de Gichin Funakoshi

A crise de 1990 e o campeonato mundial de Lima

A recusa sistemática de Nishiyama em alinhar a ITKF com a WUKO gerou uma crise com o COI, que exigia a fusão das duas organizações. A WUKO foi fundada em 1960 por iniciativa do francês Jacques Delcourt, presidente da European Karate Union (EKU) e do japonês Ryoichi Sasakawa, presidente da Japan Karate Federation (JKF).

No início dos anos 1990 houve uma corrida internacional de federações nacionais de karatê de vários e importantes países para a WUKO, muito mais alinhada à ideia do COI de um karatê esportivo. Por outro lado, a ITKF passava por um momento de grande fragilidade.

Jacques Delcourt faleceu em 19 de novembro de 2011 aos 83 anos – Foto Karatê Bushidô

O campeonato mundial de 1990 estava programado para ser disputado na Argentina. Na época, a superpoderosa Federação Argentina de Karatê (FAK), entretanto, tinha recém-migrado para a WUKO e cancelou o evento. Sensei Nishiyama telefonou para seu amigo peruano, Eduardo Wayo Salas, e pediu ajuda: “Wayo, precisamos fazer o Campeonato Mundial da ITKF. Eu sei que você pode organizá-lo”.

E assim, sensei Wayo Salas iniciou seu trabalho telefonando para amigos e usando recursos de seu próprio bolso seguiu em frente. Sensei Nishiyama conhecia o espírito dele, e por isso apostou nele todas as suas fichas.

Países de grande representatividade no karatê mundial, liderados por amigos pessoais do mestre Nishiyama, passaram a confirmar sua participação: além dos Estados Unidos e do próprio Peru, a Itália do sensei Shirai, o Brasil do sensei Tanaka, a Iugoslávia do sensei Jorga, o Canadá do sensei Jorgensen, a Argentina, e a lista não parava de crescer.

Sensei Eduardo Wayo Salas

Sensei Salas, em entrevista recente à Revista Budô, afirmou: “Este evento foi um momento mágico, especial para a ITKF e para o karatê tradicional. Ocorreu em momento de grande fragilidade, mas, contrariamente à expectativa, o tradicional saiu revigorado”.

Neste que foi o primeiro campeonato mundial exclusivo da ITKF ocorreram dois fatos históricos de extrema importância. O primeiro foi a conquista do primeiro lugar em kumitê pelo argentino Luis Alberto Vásquez, praticante da escola Shorin Ryu, e com isso a ITKF mostrava ao mundo ser uma organização eclética e global de karatê tradicional composta por várias escolas japonesas.

O segundo e mais importante fato foi a realização da assembleia geral ordinária que, composta por representantes de mais de 40 países, aprovou a constituição (estatuto) da International Traditional Karate Federation (ITKF).

Luiz Alberto Küster – Foto Budopress

Constituição

A fundação de uma organização, empresa ou até de um país se dá no momento da promulgação de sua Constituição. É nela que se estabelece o conjunto de regras, política fundamental, princípios, estrutura, procedimentos, poderes, direitos e deveres dos associados, acionistas ou cidadãos, que variam conforme o objetivo da empresa ou instituição.

A assembleia geral da ITKF que ocorreu em 1990, em Lima, Peru, contou com a participação de mais de 40 países. Foi o próprio sensei Hidetaka Nishiyama que escolheu a mesa diretiva para os trabalhos, composta por Tori Aiko, diretora da ITKF; Eduardo Wayo Salas, presidente da Federação Peruana de Karatê Tradicional; Vladimir Jorga, diretor da ITKF, presidente da Federação Europeia e da Federação Iugoslava de Karatê Tradicional; shihan Hidetaka Nishiyama, presidente da ITKF; Michael Crowe, secretário geral da ITKF; Luiz Alberto Küster, presidente da Confederação Brasileira de Karatê  Tradicional; e Luigi Puricelli, presidente da federação italiana e secretário geral da federação europeia.

Shihan Hidetaka Nishiyama – Foto Shotokan Karate Magazine

Então presidente da CBKT, e atual secretário geral da ITKF, Luiz Alberto Küster disse à revista Budô que o estatuto da ITKF foi aprovado por unanimidade. “Foram três dias de trabalhos intensos. Ao final, a Constituição da ITKF foi aprovada por unanimidade.”

“A Constituição estabeleceu o propósito básico da ITKF: popularizar e desenvolver o karatê tradicional, promover o fortalecimento das relações amigáveis entre as organizações-membro, buscar o desenvolvimento do espírito esportivo e, assim, contribuir para a perfeição do caráter humano.”

Shihan Hidetaka Nishiyama definiu que a vitória não é o objetivo final do karatê tradicional. O karatê tradicional é uma arte de autodefesa que usa apenas o corpo humano em sua maneira mais eficaz. Todas as suas regras devem ajudar e motivar o participante na busca da perfeição do caráter por meio de esforços físicos e mentais ilimitados. Seu elemento principal é o todome. Todos os métodos de treinamento devem incorporar o respeito ao adversário.

Professor Vladimir Jorga – Foto Budopress

Sensei Vladimir Jorga afirmou à Budô que a aprovação da Constituição naqueles tempos foi um acontecimento excepcional, pois lançou as bases para o futuro desenvolvimento do karatê no mundo. “Além disso, fomentou a formação de organizações regionais e continentais como as federações da Pan-América, Europa, Ásia-Oceania e África”, disse o dirigente, que prosseguiu: “Avalio aquela assembleia geral da aprovação da Constituição como histórica, pois além do registro daquele documento extraordinário, foi o primeiro encontro oficial que se seguiu à transformação da IAKF em ITKF”.

Sensei Jorga finalizou destacando o legado do sensei Nishiyama. “Esse foi o grande legado deixado pelo mestre Nishiyama: a criação da IAKF-ITKF, a introdução do manual do treinador, das regras de competição e, principalmente, da transmissão de conhecimento em treinamentos de campo internacionais realizados no verão em San Diego (Califórnia).”

Richard Jorgensen – Foto Budopress

ITKF hoje

Sensei Nishiyama faleceu em 7 de novembro de 2008 em Los Angeles e postumamente recebeu a graduação de juu-dan (10º dan) em 10 de outubro de 2009, de Richard Jorgensen, seu amigo de lutas junto ao COI e partícipe ativo na criação da IAKF e da ITKF, que o sucedeu.

Na cerimônia de outorga, Jorgensen reverenciou o fundador da ITKF e um dos maiores líderes do karatê mundial. “Hoje, enquanto honramos a memória do nosso grande líder, no aniversario de um ano de seu passamento, vamos assumir o compromisso de dedicar nossos treinamentos à obra e ao legado do sensei Nishiyama.”

Sensei Jorgensen lembrou que Nishiyama se recusava a receber a distinção em vida. “Se atingir o ápice, eu nada mais terei a aprender e a vida perderá o sentido.”

Presidida atualmente pelo professor Gilberto Gaertner, a ITKF segue viva e forte, completando 35 anos. A última edição do campeonato mundial em Curitiba (PR), com a participação de mais de 40 países, foi um sucesso absoluto. Segundo os dirigentes atuais, a entidade está adequando-se aos novos tempos e a tradição continua.

Renshi Hidetaka Nishiyama com a medalha da Ordem do Tesouro Sagrado concedida pelo Imperador Akihito