20 de julho de 2025

Para o professor Marcello Pereira de Sousa, o jiu-jitsu pode mudar vidas. Essa é uma convicção construída ao longo de décadas de prática, estudo e ensino. Faixa preta em judô e jiu-jitsu, profissional de Educação Física e discípulo direto do mestre Álvaro Romano na Ginástica Natural, ele transformou sua paixão pelas artes marciais em uma missão: formar cidadãos conscientes por meio do esporte.
A saudação em za-rei sintetiza a reverência às raízes do judô e do jiu-jitsu — a fusão entre as artes suaves que moldaram sua trajetória como educador e mestre © Global Sports
Com uma trajetória marcada por superação, disciplina e afeto, o professor Marcello defende um jiu-jitsu acessível, seguro e acolhedor, que respeita as fases da vida e promove o crescimento pessoal de cada praticante. Nesta entrevista, ele compartilha sua história, seus valores e suas reflexões sobre o cenário atual da modalidade no Brasil e no mundo, destacando o potencial educacional do jiu-jitsu, o cuidado necessário na formação das novas gerações e a explosão global da modalidade, hoje marcada por um elevado grau de profissionalismo.
Sensei Marcello Sousa conclui a passagem de guarda em demonstração técnica com sensei Michel Miyashita © Arquivo
Ao longo da entrevista, Marcello também traça paralelos entre o jiu-jitsu e o judô — comparação inevitável, dada sua vivência, domínio técnico e expertise nas duas modalidades. Longe de estabelecer uma hierarquia entre elas, suas respostas convidam à reflexão sobre os caminhos trilhados por cada uma e sobre o que o jiu-jitsu ainda pode conquistar. É justamente nas perguntas finais que emerge com mais força a visão do professor sobre o futuro da modalidade, que cresce de forma exponencial dentro e fora do país.
Comemoração de 1 ano da NoGenkai School, fundada em janeiro de 2024 pelo sensei Marcello Sousa, no dojô da KG Fight Team, na Mooca © Arquivo
Você edificou sua vida nos tatamis?
Bom, se você me perguntasse isso há alguns anos, talvez eu não respondesse com tanta sinceridade, pois sentia vergonha. Mas, felizmente, eu cresci. Depois de tudo o que vivi por meio da arte suave e do caminho suave, hoje tenho muito orgulho da minha trajetória. Sempre bato nessa tecla e uso a minha história para mostrar que, sim, é possível construir uma vida através do esporte — especialmente do judô e do jiu-jitsu. Minha mãe veio sozinha do Maranhão, muito pobre, quando eu tinha apenas um ano de idade. Meu pai nos abandonou. Fui criado na comunidade de Heliópolis, e minha mãe sempre me protegeu muito. Isso foi bom por um lado, mas, por outro, eu era um menino superinseguro. Se alguém falasse mais alto comigo, eu chorava. Mas um dia, quando era faixa-verde, consegui derrubar um adversário com uma bela projeção e pensei: “Acho que não sou tão ruim assim.” Ali começou meu processo de transformação.
Como aconteceu sua formação nos tatamis e na vida acadêmica?
Comecei no judô em um projeto social na escola chamado Parceiros da Família. Meu primeiro professor foi Fábio Stort, formado na Associação Okinawa do Ipiranga. Lá conheci meu saudoso sensei Hideo Oswaldo Matsuda, e depois tive aulas diretamente com o sensei Seiko Komesso. Iniciei no judô em 2000 e segui até 2011 quando recebi o meu sho-dan. Em 2004, conheci o mestre Cícero Costha, recém-promovido à faixa preta. Representávamos a B9, equipe de jiu-jitsu do Barbosinha. Mais tarde, Cícero fundou sua própria equipe, o Projeto Social Lutando Pelo Bem Cícero Costha, que hoje é uma das maiores do mundo. Foi uma grande virada: em 2011 me formei em Educação Física pela UNIP, conquistei a faixa preta de judô e, no ano seguinte, a de jiu-jitsu. Um marco definitivo na minha vida.
Sensei Marcello Sousa ensina técnica de shime-waza (estrangulamento) aos alunos José Miguel e Cauê Rocha, com foco na precisão e na segurança © Global Sports
Você defende um modelo inclusivo de ensino. Como enxerga o papel do professor nesse processo?
O que me move é dar condições para que todos, sem exceção, possam praticar jiu-jitsu, independentemente da idade, da condição física ou de qualquer outra limitação. Na minha escola, temos crianças, pessoas que não querem competir e até duas senhoras com cerca de 70 anos. Uma vez, o sensei Sadao Fleming me disse que, se você chega a um dojô onde não há faixas-brancas, mulheres, crianças e pessoas de diferentes idades, com certeza não está em um ambiente saudável. Isso é família. É o mais experiente ajudando o mais novo, é o mais forte cedendo seu corpo para que o outro aprenda. Para mim, isso é inegociável.
Samira Sousa, faixa-azul de jiu-jitsu e esposa do sensei Marcello, demonstra com precisão a técnica de controle lateral (hon-kesa-gatame) © Global Sports
Quais ensinamentos do judô você aplica no jiu-jitsu?
O jiu-jitsu abrasileira os termos, enquanto o judô mantém o original, o que nos ajuda a entender melhor o significado literal de cada técnica. Há também a questão da postura, da reverência, do dô (caminho). O judô tem muitas referências ao xintoísmo. Cobro muito isso dos meus alunos: como entrar no dojô, posicionar os chinelos, o uso correto do kimono, unhas cortadas, postura, respeito aos pais, vocabulário técnico em japonês. Às vezes, conto em japonês e, aos poucos, vou moldando os alunos nesse padrão. Uma das práticas que não abro mão é o sôji, o ato de limpar o dojô após os treinos. Isso carrega um valor simbólico e educacional enorme — e quem mais se entrega a isso são os adolescentes. É o momento de refletir, respirar, desenvolver o sentimento de pertencimento. Quem limpa, cuida.
“Hoje o jiu-jitsu é administrado por lideranças altamente qualificadas, que vêm implementando modelos sólidos de gestão esportiva. O crescimento global da modalidade comprova que o jiu-jitsu incorporou o que há de mais moderno em termos de organização, disciplina e visão estratégica.”
Por que escolheu ser professor de jiu-jitsu?
Cresci em comunidade, com dificuldades, e muita gente dizia que só era possível vencer financeiramente em determinadas profissões. Mas tive um insight: pois queria fazer algo que amasse de verdade, algo para a vida toda. Escolhi a Educação Física, me formei no judô, no jiu-jitsu, e também comecei a praticar a ginástica natural com o mestre Álvaro Romano, que se tornou meu mentor. Vi nele alguém que fazia tudo com vocação. Hoje, uso o judô, o jiu-jitsu, a ginástica natural e a Educação Física como ferramentas para melhorar pessoas — da mesma forma que essas práticas me transformaram. Pois eu era retraído e não conseguia olhar nos olhos das pessoas. Hoje converso com firmeza, com confiança, com respeito. E quero seguir nesse caminho até o fim da vida. Então, respondendo à sua pergunta: escolhi trilhar o jiu-jitsu porque é onde mais me identifico. Onde consigo integrar com mais liberdade os ensinamentos do judô, os fundamentos da Educação Física e, sobretudo, os conceitos da ginástica natural. Esse conjunto é o grande diferencial da minha escola.
Evento da NoGenkai School realizado em julho de 2025, na Academia Inner Choice, no bairro da Aclimação, em São Paulo, reafirma o compromisso da escola com a expansão técnica e filosófica do jiu-jitsu © Arquivo
Qual é o seu maior desafio como professor?
Não sei se chamaria de desafio, mas uma das dificuldades que encontro é atrair mais pessoas para o tatami. Quem está dentro da escola, eu consigo acolher, orientar, compreender. Dou aulas desde a faixa-roxa e aprendi a observar o que as pessoas realmente buscam. O desafio está em expandir essa mensagem, mostrar que o jiu-jitsu é para todos. Esse é o espírito da Nogenkai School, a escola que fundei em janeiro de 2024.
Sua prioridade é formar campeões, bons cidadãos ou ambos?
Minha prioridade são bons cidadãos. Se surgir alguém que queira e consiga viver do esporte e da filosofia de vida que o jiu-jitsu e o Budô proporcionam, ótimo. Mas a base de tudo é formar seres humanos melhores.
Sempre atento aos detalhes, sensei Marcello Sousa orienta com precisão a nova geração de praticantes da NoGenkai School © Global Sports
O que mais te incomoda no cenário atual do jiu-jitsu de base?
Antigamente o jiu-jitsu era muito marginalizado. Havia a imagem de “gente brava, com orelha estourada”, e o ambiente era desorganizado. Isso mudou muito. Hoje o jiu-jitsu é uma ferramenta socioeducativa tão linda quanto o judô. O problema é que, junto com o crescimento, veio uma certa “profissionalização precoce” das crianças. Vejo crianças com postura de adultos, falando como adultos. Como professor de Educação Física, sei que o esporte é importante, mas o excesso pode causar lesões físicas e emocionais irreversíveis. Crianças precisam viver a infância. O jiu-jitsu deve ser lúdico, pedagógico, não apenas competitivo. Infelizmente, há casos em que pequenos atletas viram fonte de renda da família. Isso me preocupa.
Em seiza, sensei Marcello simboliza o elo entre as duas artes suaves: o legado de respeito, disciplina e técnica que o judô transmitiu ao jiu-jitsu, e a constante reinvenção e expansão global que o jiu-jitsu devolve à história das artes marciais © Global Sports
Você chegou a competir?
Sim, competi no judô pela Associação Okinawa do Ipiranga e, posteriormente, representei o São Paulo Futebol Clube por dois anos, até sofrer uma lesão que me obrigou a parar. No jiu-jitsu, consegui me adaptar melhor. Utilizo o judô como base defensiva para evitar quedas e combino com técnicas de wrestling para os ataques. Ingressei em uma escola altamente competitiva e, desde então, conquistei mais de 15 títulos paulistas (FPJJ), diversos pódios internacionais e três medalhas em campeonatos europeus da IBJJF — sendo campeão em uma das edições. Também obtive resultados expressivos nos principais torneios do Brasil, como o Campeonato Brasileiro (CBJJ e CBJJE), o Sul-Americano (CBJJ) e o Pan-Americano (CBJJE).
Uma das várias turmas da Academia Cícero Costha (matriz), onde o sensei Marcello Sousa segue aprofundando seu aprendizado sob a orientação direta do mestre Cícero Costha © Arquivo
Quem leva mais vantagem: o judoca que aprende jiu-jitsu ou o jiu-jiteiro que aprende judô?
Dentro do contexto competitivo do judô, quem leva vantagem é, sem dúvida, o judoca que aprende jiu-jitsu. A base técnica, a postura e o entendimento das regras do judô fazem diferença, e ao incorporar os fundamentos do jiu-jitsu no ne-waza (luta de solo), esse atleta amplia seu repertório e se torna ainda mais completo.
Como você justifica o crescimento explosivo do jiu-jitsu no mundo?
O jiu-jitsu evoluiu muito. Antigamente era desorganizado — você se inscrevia, mandava e-mail, chegava no evento e a chave nem existia. Hoje é completamente diferente: se sua luta é às 15h57 e você não estiver lá, perdeu. Essa organização, aliada à disciplina e à visão internacional, impulsionou o crescimento. Nos EUA e Emirados Árabes, crianças aprendem jiu-jitsu na escola fundamental, como o judô no Japão. E isso está se espalhando pelo mundo.
Sensei Marcello Sousa em trabalho técnico de guarda com o aluno faixa marrom Dário Oliveira, demonstrando as possibilidades ofensivas do atleta que atua por baixo © Arquivo
E quanto ao alto rendimento?
Nesse nível, o judô estagnou. Na seleção, o atleta fica engessado, não pode competir fora do circuito da Federação Internacional de Judô (FIJ). No jiu-jitsu, há liberdade. O atleta pode lutar vários eventos profissionais e ganhar muito bem. Há marketing, mídia, televisão. O jiu-jitsu deu um salto enquanto o judô ficou parado.
“O jiu-jitsu está hypado. Grandes nomes do esporte e celebridades treinam, e a modalidade vem sendo valorizada por figuras influentes — ou seja, virou tendência. De Gisele Bündchen a sheiks dos principais países do Oriente Médio, o jiu-jitsu conquista cada vez maior espaço.”
Você entende que o judô é mais formal e o jiu-jitsu mais informal?
Discordo totalmente. O jiu-jitsu já foi uma modalidade marcada por maior informalidade, mas hoje é administrado por lideranças altamente qualificadas, que vêm implementando modelos sólidos de gestão esportiva. Gradualmente, essa evolução tem eliminado práticas amadoras e consolidado uma estrutura cada vez mais profissionalizada. O crescimento global da modalidade comprova que o jiu-jitsu incorporou o que há de mais moderno em termos de organização, disciplina e visão estratégica — alcançando um patamar de excelência que poucas modalidades esportivas no mundo ostentam atualmente.
Marcello Sousa ao lado de sua esposa, Samira Sousa, faixa azul de jiu-jitsu e parceira dentro e fora dos tatamis © Global Sports
Você entende que o jiu-jitsu está na moda, assim como o surfe e o skate?
Com certeza. Está hypado. Grandes nomes do esporte, celebridades e personalidades influentes vêm adotando o jiu-jitsu como prática regular — ou seja, virou tendência. De Gisele Bündchen a Demi Lovato, passando por Jason Statham — astro de Hollywood e faixa roxa ativo na modalidade — até Lex Fridman, cientista e influenciador global com milhões de seguidores que constantemente promove o jiu-jitsu em seus podcasts e redes sociais. Além disso, o esporte vem ganhando espaço entre empresários de peso e figuras políticas de grande alcance. As premiações são milionárias e, do ponto de vista midiático, há conteúdo para todos os gostos: análise técnica, arbitragem, humor, bastidores. E o mais incrível é que o jiu-jitsu ainda não chegou ao mundo inteiro. Temos muito espaço para crescer e evoluir.
Sensei Marcello com a equipe de judô do Tricolor, campeã por equipes no Campeonato Paulista Veteranos, realizado em 28 de julho de 2018 — ocasião em que também conquistou a medalha de prata na categoria individual © Arquivo
Quais são os principais campeonatos e valores de premiação no jiu-jitsu mundial?
Temos o Abu Dhabi World Pro (ADWPJJC), organizado pela Federação dos Emirados Árabes Unidos, com premiações que chegam a US$ 800 mil. O AIGA BJJ Tournament, realizado no Cazaquistão, elevou ainda mais o patamar, oferecendo US$ 1 milhão em prêmios — sendo US$ 500 mil para o campeão. No topo do ranking financeiro está o Craig Jones Invitational (CJI), que distribui impressionantes US$ 3 milhões, com US$ 1 milhão para o campeão de cada categoria, US$ 10 mil garantidos pela participação e bônus de US$ 50 mil para a melhor finalização. No Brasil, o BJJ Stars se destaca como o principal evento profissional da modalidade, oferecendo bolsas e premiações compatíveis com a elite nacional e internacional. Com transmissões amplas, estrutura de alto nível e valorização dos atletas, o evento elevou o padrão das competições nacionais. E isso é só o começo: Rússia, Estados Unidos e outros países seguem promovendo torneios cada vez mais competitivos e atrativos, sinalizando uma nova era para o jiu-jitsu mundial.
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