Meu maior troféu no judô!

Professor kodansha juu-dan (10º dan) Sumiyuki Kotani

O domínio pleno da arte do judô só se adquire por meio da experiência, pela eficiência técnica, pelo tempo de prática e estudo, conforme é demonstrado na literatura científica como informações proprioceptivas

Fudo-shim
22 de novembro de 2019
Por Prof. Ms. ODAIR BORGES I Fotos ARQUIVO
Curitiba – PR

Acabara de chegar ao Japão em 1970, annus mirabilis do judô mundial, e estava adaptando-me aos costumes, aos treinamentos e ao idioma japonês. Havia estudado no Brasil durante um ano, mas conviver com as pessoas e pensar em japonês ainda era muito difícil. Fui hóspede na casa da família Ishii, na cidade de Ashikaga, prefeitura de Tochigi, a mais ou menos 90 quilômetros de Tóquio.

Nascido em 1903, o lendário sensei Kotani edificou uma das mais expressivas trajetórias dentro do Instituto Kodokan, falecendo em 19 de outubro de 1991 aos 87 anos

Professor Yukiti Ishii e senhora Harue Ishii, pai e mãe do nosso primeiro medalhista olímpico, Chiaki Ishii, seriam responsáveis por mim no Japão – meus pais durante um ano.  Após 20 dias morando numa casa típica de família japonesa, eu e Yukiti Ishii sensei nos dirigimos a Tóquio para minha apresentação na Universidade Waseda, na qual, como bolsista, faria meus treinamentos. Em seguida passaríamos no Instituto Kodokan, onde moraria e faria cursos técnicos.

Na época, o sonho de judocas do mundo inteiro era estudar e praticar com grandes mestres o judô de Jigoro Kano no Instituto Kodokan. Afinal era um privilégio conhecer, conviver, praticar e aprender com os melhores do mundo, tanto japoneses quanto grandes lutadores estrangeiros que lá se preparavam para o mundial de 1971 e para a estreia oficial do judô nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Com 22 anos, eu era san-dan (KDK), tricampeão paulista, vice-campeão brasileiro e integrante da seleção brasileira.

Na Universidade Waseda fomos recebidos pelo sensei Yoshimi Ozawa, hoje juu-dan (10º dan), e pelos estudantes do clube do judô, cujo capitão era Toyoji Matsumoto, com quem ainda hoje mantenho contato. Chiaki Ishii e seu irmão Isamu Ishii também se formaram em Waseda.

No Kodokan sensei Ishii Yukiti e eu fomos recebidos pelo diretor do departamento de estrangeiros, sensei Sumiyuki Kotani, faixa vermelha, que na época ainda era kyuu-dan (9º dan). Imaginei que deveria estar perto dos 60 anos, mas tinha 66. Após as formalidades de praxe, informou-me os horários de aulas e cursos obrigatórios de nage-no-kata, katame-no-kata e nage-waza, respectivamente com os professores Kotani, Toshiro Daigo, Yoshimi Ozawa e Ichiro Abe, com os quais tive a honra de conviver e aprender.

Professor kodansha hachi-dan (8º dan) Odair Borges

Haveria aulas e treinamentos todos os dias, de segunda a sábado. Além disso, seguíamos o calendário das competições mensais tsukinami-shiai e kohaku-shiai e os cursos de verão e de inverno.

Ajustados os compromissos, finalizando a conversa, Kotani sensei me disse: “Estrangeiros vêm ao Japão treinar e aprender judô, mas não terão sucesso se não entenderem o modo como é praticado o judô japonês”. Esta foi a primeira lição.

Sozinho em Tóquio e já instalado em meu apartamento no Kodokan, no dia seguinte, após o primeiro treino na universidade, com duas horas de randori, voltei ao Kodokan para a primeira aula de nage-no-kata com Daigo sensei. Após a aula subi ao dojô principal, formado por 500 tatamis – hoje já conhecido por muitos brasileiros. A propósito, fui o primeiro brasileiro a fazer estágio de treinamento como bolsista em universidade japonesa, morando e estudando no Instituto Kodokan durante um ano.

No dojô, reencontrei Kotani sensei, agora vestindo judogi. Nunca tinha visto um faixa-vermelha, muito menos em randori; e, no Brasil, raríssimas vezes vi um professor kodansha vermelha e branca (kohaku obi). Por estas coisas que o acaso não explica, veio até mim, olhando em minha direção, um traço de sorriso nos lábios, caminhando lentamente, e me chamou: “Odairu”!  Respondi rapidamente: “Hai”, como já tinha sido orientado. Logo elogiou meu ukemi e no silêncio que se fez por sua presença só o ouvi dizer: “Sukoshi yateru ka?” (vamos praticar um pouco?). Mostrou-me como se deveria fazer o cumprimento naquele dojô, assumindo um gestual característico, deixando antever que seria meu parceiro de randori naquele momento. Fui pego de surpresa e precisei de alguns segundos para alcançar o entendimento pleno. Ao mesmo tempo, um privilégio.

Mestre Jigoro Kano, foi o professor de Sumiyuki Kotani

Com mão firme segurou minha gola esquerda do judogi e, com a outra, com a mesma energia, prendeu minha manga. Fiz o mesmo e ouvi: “Vamos apenas caminhar pelo tatami, comande você as direções”. Ficamos andando por uns três minutos, deslocando-nos para frente, para trás e para os lados; de quando em quando ele parava, trocava a pegada para a esquerda, mudava a posição das pernas e reiniciávamos.

Qual seria sua intenção? Que tipo de prática era essa que eu nunca vira até então? Paramos, e ele disse: “Odairu, seu golpe preferido é uchi-mata e também tem intenções de aplicar o-uchi-gari”. Assustei-me; afinal das contas, ele nunca me vira lutar e nem sequer me conhecia.

“Use somente a força necessária. É como se você estivesse segurando um peixe vivo: se apertar demais, ele morre; se não o segurar devidamente, ele foge. Sinta seu adversário nas mãos. Entenda o judô, dedique-se e esforce-se até a exaustão.”

Logo em seguida me disse: “Derrube-me com seu tokui-waza (golpe preferido)”. Sem saber o que fazer, com a cautela que o bom-senso recomenda, e respeitando os limites que a idade daquele homem impunha, apliquei um uchi-mata com pouca intensidade. Ele sacudiu meu judogi pela gola e manga e num tom mais alto indagou: “Odairu! O que é isso? Aplique o seu golpe! Faça isso!”

Professor Kotani possuía o dom da didática e da transmissão de conhecimento

Assustado, não pensei um segundo sequer e exagerei na minha pegada em seu judogi. Ouvi ainda: “Sua pegada é muito forte; no judô não há necessidade disso e judô não tem como objetivo fortalecer os músculos”. Entrei meu uchi-mata conforme fui tecnicamente orientado por Ishii sensei aqui no Brasil, com velocidade e força para jogá-lo no tatami. Em ato contínuo, o gesto dele foi instintivo, automático, reflexo, e o revide veio em uchi-mata-sukashi.

Até hoje não assimilei e nem entendi de onde vieram tanta habilidade, suavidade e harmonia naquele contragolpe, que simplesmente me estatelou no tatami. Quando levantei, me disse: “Use somente a força necessária. É como se você estivesse segurando um peixe vivo: se apertar demais, ele morre; se não o segurar devidamente, ele foge. Sinta seu adversário nas mãos. Entenda o judô, dedique-se e esforce-se até a exaustão”.

Fiquei estupefato e impressionado com a sensibilidade com que Kotani sensei pressentiu, analisou e diagnosticou minhas técnicas preferidas, apenas caminhando e fazendo o kumi-kata.

Após breve reflexão, concluí: isso é o domínio pleno da arte do judô, adquirido pela experiência, pela eficiência técnica, pelo tempo de prática e estudo, conforme também é demonstrado na literatura cientifica como sendo informações proprioceptivas.

Terminamos assim nosso primeiro encontro em randori. Após o cumprimento, ele saiu como chegou, lentamente. Logo no dia seguinte tomei conhecimento de notícia gratificante e que muito me motivou: Kotani sensei era o último discípulo ainda vivo do mestre Jigoro Kano.

No meu íntimo guardo com imenso orgulho essa honra e privilégio. Vaidade de poucos e meu maior troféu.

“Um conto há de ser, sempre, uma história que nos demore na mente sem estragar-se com o tempo, fácil de ser lembrada e passada adiante.”

                                                                                                                                      Mário Palmério