15 de novembro de 2024
Na conquista da faixa preta uma história de superação e um grande exemplo de jita-kyoei
Para vencer obstáculos e alcançar sua graduação de sho-dan Guilherme Nobilo recebeu apoio extraordinário da família e de competentes professores
Sei-ryoku-zen-yo
15 de abril de 2020
Por N.T. MATEUS I Fotos BUDOPRESS, CIDA GONÇALVES e ARQUIVO
São Paulo – SP
Como muitas outras crianças agitadas, Guilherme Nobilo foi encaminhado ao judô para extravasar o excesso de energia antes que se transformasse em agressividade. No Judô Shinohara (Vila Sônia) aprendeu a lutar, gostou, participou de festivais, acumulou medalhas e troféus em torneio para adolescentes e, ao fazer 17 anos, chegou à faixa marrom. Nada de inesperado ou excepcional.
Mas há um detalhe: Guilherme não ouve nada. A mãe, Joyce, saiu da maternidade com o diagnóstico fechado e, entre uma cirurgia arriscada e o desafio de ajudar o filho a vencer essa limitação, ela e o pai, Mário, escolheram a segunda alternativa. Com orientação de profissionais, encontraram uma escola especializada que também ensinava a Língua Brasileira de Sinais (Libras) aos pais, e assim desenvolveram uma forma de comunicação.
Foi em meados de 2018 que o professor Fernando Ikeda (san-dan) começou a preparar Guilherme para obter a faixa preta, um processo que exige realização de módulos na Federação Paulista de Judô (FPJudô), participação em competições, cumprimento de atividades gerais em competições, qualificação e estudo técnico, além de preparo emocional. Era necessário, então, um suporte extra. E ele surgiu na figura da professora Laryssa Thabida, judoca (yon-dan), especialista em Libras e professora de educação física de larga experiência com alunos especiais.
A partir daí, Guilherme entrou o olho do furacão: uma correria das aulas no Colégio Rio Branco para os treinos na Vila Sônia e de lá para algum ponto da cidade onde Laryssa estivesse. Enquanto isso, os pais e os tios de Guilherme, Margarete e Roger Leonardis, cuidavam da logística.
Preparação rigorosa
Embora Guilherme frequentasse a Associação de Judô Shinohara desde criança, a aproximação nos treinos com o Fernando Ikeda só ocorreu quando ele decidiu preparar-se para o exame de sho-dan.
Ikeda lembra que houve uma participação efetiva dos alunos da Associação de Judô Shinohara no treino de fundamentos técnicos e kata, não apenas com o Guilherme, mas com todos os candidatos ao exame que aconteceu em outro de 2019. “Neste processo, ao meu ver, destacaram-se os professores Nádia Hori e Roberto Pereira e a faixa preta Mariana Ayumi.”
Os dois professores atuaram na parte de instrução e correção, e mostravam a escrita das técnicas numa lista. A faixa preta Mariana Ayumi, além de ser a uke durante os treinamentos, conhecia Libras e colaborou para a compreensão dele.
“Acredito que o processo para a graduação está além do saber das técnicas e o cumprimento das demais exigências da FPJudô”, enfatiza o professor. “Quando este processo é levado a sério, sem atalhos, cada candidato sabe quais são ou foram as adversidades que teve de superar, o que torna única cada faixa conquistada e, portanto, pessoal.”
Ele faz questão de afirmar que o protagonismo pertence a cada candidato, que tem uma história por trás em si, e que Guilherme merece todo o mérito da conquista.
“Como um dos professores que participaram deste processo, minha missão foi uma: ser apenas um facilitador. Aprendi com meu sensei, Massao Shinohara, que há coisas que vêm apenas com o tempo, e o amadurecimento inquestionavelmente é uma delas. Sei que cada aluno que passa por nós é único, e cada um nos ensina um pouco, basta que tenhamos sensibilidade suficiente para perceber e vivenciar esta troca. Sem sombra de dúvidas o Guilherme contribuiu para meu crescimento como professor.”
Para Ikeda, a inclusão não deve facilitar ou encurtar o processo de formação do atleta, seja por enternecimento ou por subestimação das habilidades e capacidades, mas sim criar meios para que todos possam realizar o processo e lograr a nova graduação.
“Como apontava o professor Jigoro Kano, o judoca é o que possui inteligência para compreender aquilo que lhe ensinam, paciência para ensinar o que aprendeu aos seus semelhantes e fé para acreditar naquilo que não compreende.”
Assim como os demais candidatos, para obter a faixa preta o Guilherme teria de submeter-se a todas as etapas, e em cada uma delas foram feitas adaptações. “Conversei com o professor Dante Kanayama, coordenador do exame de graduação da Federação Paulista de Judô (FPJudô), e ele permitiu que o Guilherme lesse a ficha das técnicas que os examinadores solicitariam a ele no momento da prova”, conta o professor Ikeda. “Mas não houve nenhuma alteração no conteúdo da avaliação.”
Para a realização das atividades gerais em eventos, como coordenador do departamento de oficiais técnicos, ele avisava e instruía os demais oficiais sobre o Guilherme, bem como explicava aos árbitros da área, estabelecendo assim um ambiente de total integração e interação.
Na reta final
Um fato importante a ressaltar é que Guilherme participa de competições como qualquer outro judoca, e não numa categoria especial. Por não ouvir, ele sempre fica atento ao árbitro, que por sua vez tem de ser informado. A comunicação é muito visual, e no caso do Guilherme sua percepção é muito apurada. Quem explica é a professora Laryssa Thabida, que atuou como intérprete de Libras no exame de graduação em outubro, mas já o vinha preparando desde o início do ano.
“Quando a mãe do Guilherme me procurou, por indicação do professor Ikeda, eu falei que ia ser um desafio. Era algo muito novo para mim e para ele. Eu não podia prometer que ia dar certo. Se o resultado viesse em outubro, o meu trabalho estaria feito”, lembra Laryssa, que não cobrou nada por essa preparação. O compromisso da família de Guilherme era levá-lo aonde a professora estivesse, na hora em que fosse preciso.
Na Libras, não há sinais definidos para o judô, então Laryssa tinha de buscar um meio de Guilherme identificar as técnicas. “Começamos do zero. Primeiro fui descobrir o que ele já sabia, o que conseguia executar. Se eu usasse a datilologia, ele aprenderia a escrever o nome, mas como explicar a execução?”, detalha a professora. “Eu não podia cair para ele. Então pedi ajuda ao professor Leo, San-dan, que cedeu sua academia na avenida do Cursino, pois no começo do ano o CAT estava fechado e não podíamos perder tempo. Ele não só abriu a academia para nós, como ainda caía para o Guilherme.”
A cada técnica que o professor Leo executava, Laryssa ia fazendo a datilologia correspondente. “Não fazia sentido criar um sinal, se ele não sabia o nome da técnica e não conseguia compreender situações abstratas. Por exemplo, como explicar o que é o-soto-gari? Uma varrida grande? Não faz sentido. Então eu tive de desenvolver um contexto, criar uma historinha.”
“Mesmo dentro do judô algumas pessoas me perguntavam por que eu perdia tempo com isso de Libras. Não estou perdendo tempo. Sou uma pessoa engajada com o judô há quase 30 anos. Não sou apenas competidora, árbitra, técnica. Tenho um sentimento pelo judô de uma forma muito mais ampla.”
No caso da banca examinadora, nenhum dos integrantes falava Libras, mas eram pessoas experientes, familiarizadas com diferentes tipos de deficiência. Aliás, todo mundo conhecia o Guilherme, que comparecia sempre ao CAT às quartas-feiras. E embora não tivesse um contato mais próximo, Laryssa já o conhecia desde criança e ao vê-lo nas competições, comunicando-se por Libras, às vezes conversava com ele.
“O Guilherme foi parabenizado pelos senseis depois do exame”, comenta a professora. “Perguntaram se era meu aluno e eu expliquei que ele é da Vila Sônia e que eu só ia fazer interpretação da técnica – porque leitura é leitura, e Libras é Libras. O Guilherme ficou um pouco nervoso, todo mundo fica, mas estava muito bem preparado. Nós treinamos muito, desde janeiro, sábado, domingo, feriado. No curso de fundamento técnico, no centro olímpico, ele se esforçou o dia inteiro e se dedicou muito. Ele tem deficiência auditiva, mas na percepção física já estava preparado, pois é um competidor. Ele vivencia o judô de corpo e alma.”
Laryssa faz questão de ressaltar as qualidades de Guilherme como competidor. “Ele tem tudo de bom que um judoca deve ter: é educado, comprometido; se tiver dúvida, pergunta. Sou suspeita para falar porque tive uma vivência muito próxima com ele para o exame, mas garanto que ele tem tudo que é exigido para ser um faixa-preta. Com mérito. O mérito é dele, não é meu. Quem fez o exame foi ele.”
A empatia entre ambos levou Guilherme a conhecer o projeto social que Laryssa mantém na Casa Transitória, em São Paulo, para crianças da comunidade do Belenzinho. A comunicação foi tão boa que Guilherme vai dar aulas de judô para elas como voluntário.
Como professora de educação física no ensino fundamental, Laryssa conheceu muitos alunos especiais e nunca tratou deficiências como incapacidade. Mas trabalhar com inclusão, reconhece, nem sempre é fácil. “Desde 2002 Libras é a segunda língua oficial do País. Mas mesmo dentro do judô algumas pessoas me perguntavam por que eu perdia tempo com isso. Não estou perdendo tempo. Eu sou uma pessoa engajada com o judô há quase 30 anos. Não sou apenas competidora, árbitra, técnica. Tenho um sentimento pelo judô de uma forma muito mais ampla. O povo tem de viver mais o judô, e não ser apenas competidor.”
Guilherme por ele mesmo
Nascido em 26 de abril de 2001, Guilherme Nobilo começou a praticar aos 6 anos de idade, na então Associação de Judô Vila Sônia, hoje Associação de Judô Shinohara. A indicação surgiu num encontro casual do pai dele com de Aurélio Miguel.
“Meus pais falam que eu era muito agitado e tomava remédio por causa do diagnóstico de transtorno do déficit de atenção”, conta. No começo seus senseis eram Massao Shinohara e depois o neto dele, Marcelo Shinohara. Em seguida vieram Maurício Kawahara e Felipe Tereda. Atualmente treina kata com os professores Fernando Ikeda, Nádia Hori e Roberto Pereira.
“Para mim era uma brincadeira legal”, lembra Guilherme. “Ninguém sabia Libras, mas isso não era problema, pois na brincadeira todos se entendem. Eu observava tudo e reproduzia, e a cada dia tentava fazer melhor, aperfeiçoando os golpes. Fazia muito uchi-komi para apurar minha técnica. O judô é visual. Minha relação com os senseis e colegas era afetuosa e de muito respeito. Na Vila Sônia somos uma grande família.”
Claro que houve muita dificuldade quando o aprendizado ficou mais sério. “O visual sozinho não dá conta de entender as nuances das técnicas e regras em toda sua dimensão. Era necessário aprender o significado dos nomes em japonês, para que a técnica saísse correta e não meramente reproduzida.” Hoje Guilherme tem como tokui-waza o seoi-nage, tai-otoshi, de-ashi-harai e ura-nage e seu maior prazer no judô é competir e jogar de ippon.
“Eu estava bem preparado e confiante. Fui bem recebido pela banca examinadora, e eles até arriscaram uns gestos parecidos com Libras. Isso me deixou à vontade e me senti acolhido.”
Mas os efeitos da prática do judô foram além disso. “Ele promoveu uma grande transformação como um todo. Consegui controlar mais minha ansiedade, ter foco e rapidez em tomada de decisões, ter coragem de ir em busca daquilo que eu quero. Quando eu soube que tinha sido aprovado como faixa-preta, pensei: valeu a pena todo o esforço, todo o tempo dedicado. Lembrei das pessoas que me ajudaram nesse processo, principalmente minha família que está sempre junto comigo.”
Ele confessa que ficou ansioso antes do exame e que a espera do resultado pareceu uma eternidade. “Mas eu estava bem preparado e confiante. Fui bem recebido pela banca examinadora, e eles até arriscaram uns gestos parecidos com Libras. Isso me deixou à vontade e me senti acolhido, se bem que a sensei Laryssa estava ali para intermediar a comunicação quando necessário.”
Continuar o aprendizado, naturalmente, faz parte dos planos de Guilherme para o futuro. “Sensei Massao sempre fala que sho-dan é apenas o início, agora começa o aprendizado com mais responsabilidade. Quero ser sensei, dar aula para surdos e ouvintes, onde houver oportunidade. Pretendo incentivar os aprendizes falando sobre o meu esforço, para que eles confiem na própria capacidade. Quero melhorar minhas habilidades, fazer curso de árbitro e trabalhar como voluntário. São muitos projetos dentro do judô; preciso me organizar e colocar tudo isso em prática. Fora dos tatamis meu plano é formar-me em fisioterapia e buscar sempre ampliar meus conhecimentos, para que eles me possibilitem ser um ser humano cada dia melhor.”
Guilherme em família
Desde os primeiros meses de vida de Guilherme seus pais, Joyce e Mário Nobilo, com apoio dos tios Margarete e Roger, foram em busca de profissionais, como psicólogos e fonoaudiólogos, em busca de proporcionar a ele a melhor qualidade de vida possível.
“O Guilherme era uma criança muito agitada e não dormia bem”, conta Joyce. “Em consulta ao neurologista, foi diagnosticado com transtorno do déficit de atenção (TDA), e começou a tomar remédio para ficar tranquilo, mais concentrado no horário escolar. Isso me deixava inquieta e triste. Consultei outro neurologista e fui orientada a parar com a medicação e iniciar uma atividade esportiva para que ele extravasasse o excesso de energia. Primeiro tentamos o futebol, que não surtiu o efeito esperado. O judô veio por indicação de Aurélio Miguel.”
“Quando fui levá-lo no segundo dia e o entreguei ao sensei, pensei: como ele conseguirá acompanhar os demais, se não escuta. Aí ele ficou observando e repetindo os golpes, parecia que tinha nascido judoca.”
Foi o próprio campeão olímpico que indicou a Associação Vila Sônia, garantindo que o Guilherme seria muito bem acolhido pelo mestre Massao Shinohara. Numa terça-feira de carnaval em 2007 os pais foram à academia, que estava fechada, mas Marcelo Shinohara os recebeu e pediu levassem Guilherme já no dia seguinte. “Fomos tão bem recebidos pela família Shinohara, que ele continua até hoje na Vila Sônia”, lembra Joyce.
A partir do momento em que começou no judô, Guilherme mudou, ficou mais calmo, focado e responsável, pois havia treinos, horários, dietas e competições. “Quando fui levá-lo no segundo dia e o entreguei para o sensei, fiquei pensando: como ele conseguirá acompanhar os demais, se não escuta. Aí ele ficou observando e repetindo os golpes, parecia que tinha nascido judoca.”
A comunicação com os senseis e outros alunos estabeleceu-se naturalmente, por meio de gestos e combinações de sinais entre eles. Algumas vezes era necessária a intervenção da família, que estava sempre presente nos treinos. “Quando o Guilherme tinha 10 anos, um amigo de treino (Vitor), foi fazer curso de Libras só para esclarecer as dúvidas dele dentro dos tatamis. E foi um salto tão significante que naquele ano ele foi campeão paulista”, acrescenta Joyce.
A família de Guilherme já conhecia a sensei Laryssa de vê-la nos campeonatos. Mas a ajuda para o exame da faixa preta foi sugerida pelo professor Fernando Ikeda. Foi uma sensação muito boa encontrar alguém que não apenas conhecia judô, mas dominava Libras completamente. “A sensei Laryssa representou a luz para mim”, define Joyce. “Desde o começo acreditei que ela seria a melhor solução, e percebi que o Guilherme tinha ótima interação com ela. Então lhe disse: estamos juntos no que for necessário; sei que é difícil, mas confio na capacidade e dedicação do Guilherme e na sua.”
Passado o exame, a sensação foi de felicidade e alívio, depois de meses de atividades exaustivas, principalmente para o Guilherme, que tinha de acordar cedo e ir estudar, sair da escola na Granja Viana às 19 horas, pegar ônibus e descer no km 13 da rodovia Raposo Tavares onde a mãe o encontrava e o levava para os treinos, em algum lugar determinado pela sensei Laryssa. Mesmo com tantos compromissos, porém, ele obteve ótimas notas na escola e participou dos compromissos de voluntariado.
Mário Nobilo conta como foi o 19 de outubro de 2019, data em que Guilherme seria finalmente avaliado. “Estava confiante, pois sabia o quanto o Guilherme se dedicou. Acompanhei cada movimento dele, sempre de olho na movimentação da banca avaliadora, além de perceber que várias pessoas haviam corrido para ver a prova dele. Foi muito emocionante.”
A mãe, Joyce, mal conseguiu dormir, mas quando chegou a vez de Guilherme ela se lembrou da palavras que o sensei Shinohara dissera a outro judoca, Rafael Buzacarini, antes das Olimpíadas de 2016: “Quando entrar no shiai-jô, tem de pensar que está lá para ganhar, sem medo; o resultado depende de quem desejou mais”. Quando viu a apresentação de kata de Guilherme, Mário teve certeza de que tudo dera certo. “A emoção era imensa, a realização de um sonho, encerrava-se um ciclo de 12 anos de muitos treinos.” Nem adianta perguntar se faria tudo de novo. “A realização de um sonho nunca é esforço em vão, a luta para todos é constante.”
Os pais de Guilherme não poderiam concluir o relato da jornada dele até a faixa preta sem mencionar familiares e amigos que os apoiaram. “São muitas pessoas que fizeram a diferença em nossos caminhos. A nossa família é um núcleo muito unido e isso faz uma grande diferença, é a razão de o Guilherme ser essa pessoa empática e segura, que sabe exatamente o que quer. Seus tios Roger e Margarete, são como segundos pais e um porto seguro, assim como suas avós Edith e Walkiria, e seus primos. Na escola Rio Branco nunca faltou apoio dos amigos e de tantos professores cujos nomes não conseguiria lembrar agora. E, finalmente, nossa imensa admiração e respeito pelo professor Massao Shinohara, senseis Luís Juniti Shinohara, Fernando Ikeda, Nádia Hori, Roberto Pereira, Terada, Maurício Kawahara, Ayumi Kawahara (que está aprendendo Libras), Luís Alberto dos Santos, Laryssa Thabida, Nelson Ueti, Alcides Camargo, Marcos Michellini, Rioiti Uchida – uma lista interminável. Foi muita torcida e muita ajuda. Muito obrigada a todos.”