O Bannen Aikidô de Morihei Ueshiba, de certa forma, constitui a síntese de sua jornada

O aikidô nos ensina a apreciar as coisas impalpáveis, é o caminho direto para o mundo do espírito, por meio de um relacionamento saudável com os outros, exorcizando o conflito que busca impedi-lo © Centro Metamorfose

Morihei Ueshiba comparava o princípio do aiki com o universo (ware wa uchu nari) e com a possibilidade de progresso e expansão da consciência, que também é infinita.

Por Angelo Armano*
21 de julho de 2023 / São Paulo (SP)

Praticante de aikidô desde janeiro de 1972, neste artigo o advogado e professor roku-dan (6º dan) italiano Angelo Armano relata sua vivência com grandes mestres da modalidade, com os quais adquiriu profundo conhecimento do Bannen Aikidô. 

Bannen Aikidô significa o aikidô de Morihei Ueshiba, ou seja, a última parte de sua vida, de certa forma a síntese de sua jornada. Ueshiba foi sem dúvida uma personalidade complexa, que devemos relacionar não exclusivamente ao Budô, nem mesmo ao pioneirismo, mas também à ecologia, à religião, à visão sociopolítica e à tradição japonesa. A arte marcial que nos une a ela, o aikidô, é um reflexo geral do Budô: a necessidade de proteger a si mesmo e aos outros e os valores da vida nesta Terra.

Embora este início pareça aludir a um perfil cultural/filosófico e, portanto, mental, o Bannen Aikidô não é de forma alguma abstrato, mas uma disciplina concreta e de simples compreensão, embora sutil e exigente tanto física quanto mentalmente.

Sensei Angelo Armano utilizando o bo © Centro Metamorfose

Para entendê-lo, é obviamente necessário referir-se a um antigo princípio marcial, o aiki, e ver como ele funciona em outras artes marciais, como aikijujutsu, aikibudô e certas escolas de kenjutsu. Entender como Morihei Ueshiba o adaptou para seu uso pessoal e humanista, sem distorcer sua genealogia de Budô. Com isso, todas as comparações construtivas com artes marciais ou afins são bem-vindas.

Transmissão direta

Pratico aikidô desde janeiro de 1972 e já visitei vários professores e escolas, com mente aberta e assiduidade. Pude aproximar-me do Bannen Aikidô graças ao encontro que tive em 2003 com Hirosawa Hideo, nascido em 1937, que viveu por um ano e meio no dojô do fundador, apesar de ter a sua própria escola a menos de um quilômetro de distância. Ele foi diretamente instruído nos aspectos mais esotéricos desta arte, tendo Morihei Ueshiba reconhecido e apreciado a sua vocação específica a este respeito.

Enriquecido por seus ensinamentos, sou o promotor, juntamente com outros, de um grupo internacional de estudos, com seguidores na França, Brasil, Itália, Austrália e Japão, incluindo pessoas que se interessam pelo aiki sob qualquer rótulo, como fator unificador das artes marciais práticas, sem perder de vista as considerações éticas e espirituais de Morihei Ueshiba. Neste último ponto, também encontrei um grande entendimento com o mestre Yoshinobu Takeda, hachi-dan (8º dan), desde 2006, com quem estabeleci uma relação cordial e frutífera para explorar o aiki em todas as suas infinitas facetas e possibilidades.

Diferentes níveis de Bannen Aikidô

Bannen Aikidô geralmente é reduzido à ideia de uma técnica sem contacto, e isso é um enorme mal-entendido que precisa ser esclarecido. Na realidade, existem níveis de prática e conceitos explicativos que devem ser desenvolvidos autonomamente e que, acumulados, podem também conduzir a experiências sem contacto, desde que superada a visão puramente técnica. Como afirmou Christian Tissier, entre outros, a técnica em si não funciona, mas tem a função de criar habilidades marciais. É por isso que a formação técnica regular é valiosa, na perspectiva das diferentes escolas. Entretanto, pelo menos a partir do san-dan, é fundamental abrir a visão, ou mesmo invertê-la, para descobrir, por meio do princípio relacional do aiki, como a técnica pode realmente ser aplicada. Na visão de Takemusu Aiki, é o princípio interno que dá origem à forma externa – às vezes com uma expressão implausível do ponto de vista estritamente marcial.

Angelo Armano com Hideo Hirosawa shihan © Centro Metamorfose

A atenção está voltada para a conexão com o outro (musubi), que não se torna objeto de rejeição por meio de uma guarda (kamae), mas de uma integração por meio do princípio que utiliza diferentes níveis, progressivos e cumulativos (quadril, respiração, visualização, uso do olhar, vibração como kototama (mantra/kiai) e furutama, (experiência do vazio).

Hirosawa sensei costuma dizer que no Bannen Aikidô não se tem kamae, ou seja, não se toma a guarda.

No aikidô mais convencional, o sentido usual de projeção é substituído pelo conceito de convite (michibiki), ou seja, o outro é conduzido (controlado) e, se cair, é pela força da gravidade, pois seu equilíbrio foi comprometido pelo princípio aplicado muito antes de ocorrer o contato físico com o tori. O desequilíbrio, portanto, não é resultado de uma ação física que se possa conter e resistir, mas ocorre no exato momento em que alguém concentrou sua atenção para executar o ataque; quanto mais veemente a ação/intenção de atacar, mais tangível se torna a ação de desequilíbrio.

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Nesse sentido, podemos afirmar que o exercício da ação de conexão interna implica três efeitos principais:

  • O atacante sente uma mudança em seu equilíbrio, independente de uma ação física externa, e tende a se apoiar no tori;
  • O atacante fica leve, independentemente do seu peso real;
  • O Uke (pessoa que recebe o ataque) sente-se esgotado.

Vazio

Para uma boa sincronização dessa ação interna, que não deve ser feita nem cedo nem tarde demais, a noção de vazio é fundamental. Assim como na meditação, considerada um meio essencial para vivenciar a vacuidade, é comum focar a atenção na respiração.

A respiração, em sua dinâmica consciente, paralela ao desenvolvimento da sensação de vazio, torna-se o verdadeiro metrônomo da ação concreta.

“Uma das coisas que o aikidô me ensinou é justamente não esperar nada, mas enfrentar o que vier, fazendo um esforço para não rejeitá-lo” © Centro Metamorfose

Este ponto é extremamente importante no momento da aplicação: em um ataque real, ou seja, totalmente gratuito e autêntico (shiken shobu), não temos tempo para decifrar a ação e articular uma resposta adequada, mesmo que sejamos capazes de fazê-lo. Ao contrário, a possibilidade de “motim” (e não só), a ação de alguém que sinceramente nos tenha colocado intenções agressivas, mesmo antes de ser reconhecível, constitui um recurso decisivo para a resolução do conflito (katsuhayabi).

O princípio do aiki é comparado com o universo (ware wa uchu nari), dizia Morihei Ueshiba, e com a possibilidade de progresso e expansão da consciência, que é infinita. Este tema também está ligado ao vazio, conceito presente em toda a visão ontológica/filosófica do Oriente. Noutro contexto, o fundador afirmava estar no primeiro passo, convidando-nos a aprender a sua disciplina, a reconhecer este caminho e, talvez, a percorrê-lo.

Conclusão

Nem é preciso dizer, de forma simplista, que a prática do Bannen Aikidô é a educação da inteligência emocional e a expansão da consciência, o verdadeiro pré-requisito, se é que esse é o argumento principal, para qualquer autodefesa.

*Sensei Angelo Armano, roku-dan (6º dan) de aikikai, é diretor técnico do Centro Metamorfosi em Sorrento (Itália).
Deu e continua a dar cursos em Paris e na Côte d’Azur (especialmente em Biot), Bruxelas, Londres, Kazan e Saragoça.

http://www.aikikai.org.br