19 de dezembro de 2024
O Budô e o MMA
Os espetáculos midiáticos proporcionados pelo MMA são a reencarnação moderna dos espetáculos romanos, de gladiadores, no espírito do modelo panem et circenses
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
Curitiba (PR) / 15 de março de 2021
Ninguém ignora, caro leitor, que as artes marciais foram criadas para matar, ou infligir dano máximo no inimigo e fazê-lo capitular. Era, e ainda é, a guerra: extinguir ou subjugar o opositor.
Desde então longo processo histórico-cultural se insinuou. Paulatinamente viu-se a conversão da arte da guerra em forma de educação e, mais recentemente, desporto. Foi necessário, nesse processo, sublimar o fim último da prática, amenizando os efeitos e a letalidade das técnicas, incutindo no praticamente outro propósito: preservar e si mesmo e ao colega, eventualmente adversário, pelo engrandecimento e autoconhecimento de ambos.
Para isso se fez necessário enorme revisão de conceitos, nos planos teórico, técnico e, principalmente, psicológico, ainda que o artista marcial, mercê das enormes forças atávicas que nos povoam, guarde em si os instintos que habitavam seus congêneres do passado nem tão remoto.
No exercício habitual exigiu-se de instrutores, professores e mestres uma nova visão preservacionista: a machucadura somente por acidente. Assim, a lenta evolução das regras de competição, em quaisquer das modalidades, olímpicas ou não. Regras restritivas, equipamentos de proteção e punições fazem parte do largo arsenal desenvolvido para essa finalidade.
No plano técnico, na prática mesma, valorizaram-se elementos rituais, a observação das sutilezas, o treinamento metódico, a preocupação com os detalhes, a pureza do gesto, a construção moral e emocional do praticante, sem a preocupação imediata com sua eficiência como matador, ou lutador.
As regras, como era de se esperar no funcionamento dos sistemas que elas encarnam, passaram a desenvolver vida própria; já era possível lutar com o regulamento nas mãos, como é comum em todas as modalidades esportivas, cujas competições permitem distinguir como vitoriosos aqueles que melhor aplicam as regras às quais estão submetidos.
Isso não é pouco. Molda a natureza profunda dos praticantes, preparando-os para o cenário no qual terão de atuar. O desiderato é a formação integral do ser, conferindo-lhe escala moral que haverá de defender e por ela portar-se. É esse fenômeno que atualmente conhecemos modernamente como Budô, deixando no passado a concepção mais remota.
Essa situação, embora indesviável, nunca deixou de causar certo mal-estar. Muitos expressavam a correta interrogação: mais tais técnicas, emasculadas de sua intensidade, funcionariam se fosse necessário utilizá-las?
A resposta objetiva é sempre precária: não dispomos mais do campo de batalha, laboratório por excelência das lutas, com mãos armadas ou nuas, no qual era possível conferir a eficiência do guerreiro. Ainda mais em tempos de alta tecnologia em que esses eventos corporais nos conflitos armados foram virtualmente suprimidos.
Como na física experimental e especulativa, é possível prever, mediante modelos mentais, os efeitos de qualquer técnica no corpo do inimigo, sem jamais testá-la efetivamente. Seria incivilizado, contrário ao conteúdo educacional da prática e dos valores que ela pretende defender, mesmo admitindo-se a ocorrência dos acidentes de maiores ou menores proporções.
Nesse mal-estar, talvez, encontra-se a origem mais remota dos espetáculos midiáticos representados pelos eventos de MMA (Mixed Martial Arts), reencarnação moderna dos espetáculos romanos, de gladiadores, no espírito do modelo panem et circenses.
Retornamos ao princípio que alguma vez pretendemos conjurar: as lutas nessa modalidade destinam-se a infligir ao adversário a lesão máxima, capaz de fazê-lo capitular.
Não surpreende que tais eventos despertem tanto interesse, ainda que seja surpreendente que tantos se submetam ao risco de praticá-lo e envolver-se nessas temíveis competições. As polpudas bolsas em dinheiro justificam, em parte, a temerária opção.
Já se contam às dezenas aqueles lutadores com irremediáveis sequelas neurológicas, sem contar milhares de lesões, mais ou menos graves, frequentemente requerendo internações hospitalares. Avulsão de dentes, luxações em articulações, danos oculares, fraturas, edemas, rupturas, sangue, muito sangue, são a consequência dessa prática quase nova, cada vez mais popular ao nosso gosto, como era ao gosto dos romanos da época clássica.
Então, de que serviu o copioso esforço, nas modalidades específicas, em amenizar os efeitos das técnicas traumáticas, submetendo-as à preservação da saúde e da integridade física de praticantes e competidores?
Não estranhemos o comportamento humano paradoxal. É assim desde sempre. Pode parecer que os novos patamares civilizacionais nos afastariam definitivamente da natureza de que somos feitos.
Nada disso. Quase todos, inclusive este modesto escriba, manifestam vivo interesse nessas lutas de “vida ou morte” dos gladiadores modernos, ainda que sob exceção de que não deveria ser assim; seria melhor a preservação, mas sem evitar a imensa curiosidade despertada pelo uso de técnicas traumáticas quase sem limite em sua aplicação.
Mas não confunda, prezado leitor, o espetáculo mórbido do duelo sanguinário dos lutadores de MMA com o exercício moral do ser civilizado no domínio de seus impulsos. A própria curiosidade que devotamos aos espetáculos midiáticos de lutas traumáticas (e cada vez mais modalidades se apresentam ao ávido público assistente) é a demonstração cabal e terminal de que temos longo caminho a percorrer, cujo destino provavelmente jamais será efetivamente alcançado, no qual a prática marcial é um dos instrumentos hábeis a nos encaminhar na direção do último desiderato.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões