18 de novembro de 2024
O desafio filosófico do desporto
Não há nada mais presente na história humana do que as guerras. Desde os primeiros símios, até nossos dias, seres humanos embatem-se, e morrem, nas guerras, justas ou não
Por Fernando Malheiros Filho
3 de abril de 2023 / Curitiba (PR)
Todas as áreas do conhecimento tendem a dividir para compreender melhor. Visto em partes, qualquer fenômeno parece mais compreensível, embora os fatos teimem em não obedecer a esse arbitrário critério.
Não há nada mais presente na história humana do que as guerras. Desde os primeiros símios que nos antecederam – sendo o leitor darwinista – até nossos dias, seres humanos embatem-se, e morrem, nas guerras, justas ou não.
Esse verdadeiro atavismo tem suas consequências além das desgraças que sabe causar: desenvolveram-se artes e técnicas guerreiras – além dos artefatos –, com o propósito inicial de garantir a vitória – e a sobrevivência – àqueles mais bem dotados nas técnicas que apreenderam na observação do que ocorre no campo de batalha.
Essa é a origem primeva do que ocidentalmente chamamos de “artes marciais”, e que envolve enorme miríade de desdobramentos, quer no campo militar, quer na concepção e visão de mundo de quem as pratica.
Logo, e predominantemente no Oriente – sem esquecer das escolas militares no Ocidente –, mercê de circunstâncias históricas que escapam ao escopo destas linhas, essas artes chegaram ao ensino, e, transcendendo a tão só formação de guerreiros – mormente em tempos de paz –, transformaram-se em veículo de transmissão de valores filosóficos urdidos na longa carreira de todas as gerações que, premidas pela guerra, desvendaram algum sentido na vida, mesmo que pelo exercício bélico.
O fenômeno deixou de limitar-se ao acúmulo de conhecimento sobre técnicas guerreiras, que, invariavelmente, pela violência treinada, resultam na submissão ou morte do contrário. As artes guerreiras impregnaram-se de verdadeira carga cultural. Com elas o surgimento dos elementos de propagação da cultura, os valores, a compreensão do mundo, de si mesmo e dos outros, bem como o desvendamento do sentido da existência humana.
Deixou de ser o que foi no começo, despertando nos praticantes, e naqueles que ocupados em ministrar os conhecimentos acumulados por milênios – os professores, instrutores ou mestres –, a prospecção da verdade submersa na natureza humana: o que há sob a tênue capa da derme e que deve ser expressado para fora?
Esse empreendimento é geracional, e estas linhas não são senão a discreta tentativa de ver o que muitos já viram e seguirão vendo até o fim dos tempos.
Recentemente, pelo menos à vista dos ciclos históricos, essas artes, sem deixar seu fecundo leito, desbordaram para mais além, transformando-se em prática esportiva.
A popularidade das lutas, contudo, e no modesto entender deste escriba, esconde os dilemas existenciais que atormentam e seguem atormentando a trajetória humana.
O desportista não está voltado, em seu mister, para o “resto de sua existência”. Mesmo os profissionais do desporto limitam sua trajetória ao curto período em que suportam o alto rendimento. Propõem-se à vitória nos termos que a regra arbitrária indica, na visão de árbitros mais ou menos atentos à trama que têm à frente de seus olhos.
Além disso, vencer – ou ser derrotado –, tantas são as variáveis envolvidas, representa objetivo menor em relação àquelas percepções, conclusões e iluminações (Satori) que os anos dedicados à prática podem despertar.
Tampouco o treinamento do desportista é revestido daqueles elementos que a densidade cultural pode emprestar àqueles que dela desejam beneficiar-se. Restringe-se a desenvolver o gestual compatível com aquilo que é eficiente pela regra adotada. Quase nada mais.
Essas tantas restrições revelam a discrepância entre a arte, no sentido de sua pureza original, e o desporto, mas não significa que este não tenha seu valor ou deva ser abandonado.
Ao contrário, há lugar para tudo. O desporto dá publicidade à arte, fazendo-a chegar àqueles que, de outra forma, com ela jamais teriam contato. Ademais, é muito eficaz na aproximação com os jovens, sensíveis à falsa dicotomia ganhar/perder, mas que haverão de beneficiar-se do que há de mais profundo na arte (Budô): a pertinácia, a determinação, o esforço, a correção, a integridade, o valor pessoal, a compreensão daquilo que se é em contraposição àquilo que se deseja ser.
O cuidado é com o lugar que cada atividade haverá de ter no universo no qual se situa. Com frequência nota-se a inversão dos valores, a sobreposição do fim imediato à essência, o abandono daquilo que é princípio, o desencanto com o que foi alcançado.
Não há como viver sem desencantos; afinal, a vida é essa caminhada para o fim certo, por vezes trágico. Mas é possível distinguir, na hierarquia dos valores, aquilo que é mais daquilo que é menos, modulando a dedicação às atividades de acordo com sua importância.
Essa desavisada circunstância é a responsável pelo desapontamento daqueles que foram atletas, mas não viram sobreviver a essa fase da vida o interesse pela arte que os projetou. São vítimas do enfado na glória – ou na busca dela –, desaprendendo que o que realmente importa não está no ápice da carreira desportiva, mas na construção diária e sólida de sua identidade profunda.
Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.