O Judô e o Hara

Jigoro Kano fundamentou toda a sua doutrina na postura. Exigiu que os judocas tivessem uma postura ereta e firme tanto para o aprendizado das técnicas do judô quanto diante da vida

Hiden
26 de abril de 2020
Por PAULO DUARTE I Foto LARS MOELLER
Curitiba – PR

“Peito para fora, barriga para dentro”. Corre grande risco o povo para quem esta sentença se torne uma ordem geral. Por que isto pode tornar-se um perigo? Porque, segundo a sabedoria oriental, o centro de gravidade encontra-se na região abdominal, conhecida como hara. Como todo conhecimento oriental é fruto de uma experiência adquirida em estafantes exercícios, e por isso devidamente comprovado, podemos aceitá-lo como real.

Este chavão – Peito para fora, barriga para dentro – é sobejamente conhecido nos meios militares. Objetivando, apenas, melhorar a postura dos soldados, esta atitude desprende o ego de sua base inferior e o lança para cima por meio dessa contração da região abdominal. O deslocamento do ego para a parte superior do corpo sempre cria problemas. O ego só pode ser útil ao ser humano quando exerce a função de servo! Colocá-lo no comando é sempre um perigo para o povo.

Ao nascer, o ser humano traz potencialmente na sua concepção a chispa divina que comumente denominamos de essência e que espera por um grande desenvolvimento à medida que o homem se torna consciente de sua existência. Mas, paralelamente ao desenvolvimento da essência, vai-se formando a personalidade, que é construída de acordo com o modus vivendi de cada um.

Posteriormente, devido à identificação com a personalidade recém-criada, o centro de gravidade que mantinha o ego sob controle cede ao esforço impelido por este em busca da sua independência. Isto se dá devido às circunstâncias em que se é educado. No alto da sua exuberância o ego se esquece de sua origem divina, que o qualifica como servidor de todos, e com toda a sua excentricidade personalística usurpa o trono que não é seu. A personalidade é uma crosta que cresce em torno da essência, sufocando-a. Quanto mais cresce a personalidade, mais a essência se atrofia. A perda da essência deve-se ao domínio da personalidade, que se manifesta comumente no alto grau de ofendibilidade, no aumento dos desejos e posses e na geração de violências. Combater esse domínio do ego, que insiste em agir isolado e separadamente, tem sido o grande desafio do ser humano que busca, na integralidade com o centro original, o equilíbrio necessário para a sua vida.

O conceito japonês de hara significa a presença consciente desse centro original na vida do homem. O hara foi destinado ao homem para ajudá-lo a superar as suas dificuldades, mas a complacência concedida ao ego tem criado a dicotomia que se manifesta na tensão entre céu e terra, espírito e corpo. Por isso, o homem durante toda a sua vida procura resolver essa tensão que evita que encontre a sua unidade.

Destruir parte da personalidade para libertar a essência aprisionada é o objetivo último de todo ser humano para reencontrar a sua unidade. Unidade que se dá no encontro, na união do espírito e do corpo.

De posse deste conhecimento, mestre Jigoro Kano elaborou a sua arte concentrado na formação do hara. No caso específico do judô, a postura ereta e firme demonstra a existência do hara. Por isso, o mestre fundamentou toda a sua doutrina na postura. Exigiu que os judocas tivessem uma postura ereta e firme tanto para o aprendizado das técnicas do judô quanto diante da vida. Quando a má postura se faz presente, percebemos a inexistência do hara. O ego está no trono! O judoca se encolhe, se preocupa, faz má apresentação porque está focado no resultado. O ego precisa do título, da glória! O cidadão pensa com a cabeça. A resposta está sempre pronta. Na ponta da língua para ser liberada. A insensatez também. Ao contrário, quem age e pensa com o hara tem um longo percurso para elaborar a sua resposta até chegar ao órgão da fala e, assim, responder de forma mais equilibrada.

A soltura do koshi (quadril) denota relaxamento dos músculos abdominais e isso impede que o ego seja expelido para cima. Acamado no hara o judoca e o cidadão podem deslocar-se com leveza e destemor. A utilização do tanden (localizado quatro dedos abaixo do umbigo, dentro do complexo do hara) tem fundamental importância no enraizamento do judoca ao solo e do cidadão no meio social. Esta segurança faz com que ambos se entreguem a prática do judô e da vida destemidamente.

Paulo Roberto Duarte, professor kodansha shichi-dan (7º dan) é
psicossomaticista, teólogo formado pela Universidade Metodista
de São Paulo, professor e técnico dos medalhistas olímpicos
Rogério Sampaio e Leandro Guilheiro