01 de abril de 2025

Fonte Hanna Stepanik / Fairplay Initiative / Viena
Curitiba, 31 de março de 2025
No último verão, o mundo do parajudô vibrou com emoção durante os Jogos Paralímpicos de Paris 2024. Alguns meses se passaram e, agora, aconteceu a Copa do Mundo de Judô da IBSA em Tbilisi na capital da Geórgia, logo após o Grand Slam de Tbilisi 2025. Um momento oportuno para revisitarmos a trajetória de uma atleta para quem o judô teve papel transformador.
Lúcia da Silva Teixeira Araújo é atleta brasileira. Participou dos Jogos de Pequim 2008 e conquistou a prata em Londres e no Rio, além do bronze em Tóquio. Superou desafios pessoais e sociais, tornando-se uma figura inspiradora no esporte. Diagnosticada com deficiência visual ao nascer, Lucia trilhou um caminho marcado pela determinação em romper barreiras, redefinir seus limites e usar sua voz na defesa da igualdade e inclusão. A entrevista foi concedida a Hanna Stepanik, da Fairplay Initiative.
“Comecei a praticar judô aos 15 anos. Tenho deficiência visual por toxoplasmose congênita. Cresci sem ser tratada como uma pessoa com deficiência. Sempre tive problemas de visão, mas não tinha consciência disso. Só comecei a andar sozinha aos 15 anos. Meus irmãos faziam judô e resolvi acompanhá-los. Eles pararam, mas eu continuei. O judô me deu independência. Eu ia sozinha de ônibus para os treinos, e isso foi um passo muito importante na época.
No início, eu não me via como uma atleta com deficiência. Só me identifiquei assim aos 27 anos. Antes disso, queria ser advogada. Meu padrasto achava que o curso exigia muita leitura e tentou me desencorajar. Hoje sei que muitas pessoas com deficiência visual seguem carreira no Direito com sucesso. Fiz cursinho depois do ensino médio, mas em 2004 me mudei para a Europa para viver com minha mãe — e foi aí que minha trajetória começou a mudar.
Lúcia da Silva Teixeira Araújo nasceu em São Paulo, em 17 de junho de 1981 e iniciou no judô aos 15 anos © Emanuele Di Feliciantonio / FIJ
Conheci uma terapeuta corporal e decidi estudar massoterapia ao voltar ao Brasil. Passei a me enxergar de forma diferente quando conheci a Renata, atleta da seleção paralímpica de goalball. Ela me mostrou que eu era capaz de realizar o que jamais imaginei. Foi transformador. Por influência dela, voltei ao judô. Mesmo com dúvidas no começo, encarei os testes, fui aprovada e logo convocada para a seleção brasileira. Foi um ponto de virada na minha vida.
Ao longo da carreira, vivi muitos momentos marcantes, mas o mais importante foi integrar a equipe paralímpica. Até então, eu não me via como uma atleta profissional. Minha família era superprotetora, e eu me tornara muito dependente deles. Quando fui convocada, tudo começou a mudar: engravidei, tive minha filha, casei e saí da casa da minha família. Passei a assumir a responsabilidade pela minha vida. Ir aos Jogos de Pequim 2008 foi um marco. Mas o verdadeiro divisor de águas foi o nascimento da minha filha. Tive medo de cuidar dela sozinha, mas aprendi. Ali percebi que era possível conciliar maternidade e alto rendimento.
Procuro manter uma visão ampla sobre a vida. Há muitos desafios no mundo, mas isso faz parte da experiência humana. Participei de projetos sociais, inclusive com pessoas no Afeganistão, por meio da minha igreja. Essas ações me fortalecem e me fazem seguir em frente.
Quando minha filha enfrentou a adolescência e uma depressão severa, precisei escolher entre a carreira esportiva e o papel de mãe. E ser mãe veio primeiro. Foi uma fase difícil, agravada pelo diagnóstico de TDAH e ajustes de medicação que afetaram meu rendimento. Mesmo assim, nos meses que antecederam Tóquio 2020, consegui recuperar minha forma física e fiz a melhor preparação da minha vida.
Como atleta de destaque, acredito ser fundamental usar a visibilidade para conscientizar sobre questões sociais — mas com responsabilidade. Até postagens simples nas redes sociais podem impactar muito. Por exemplo, quando mostrei meu equipamento de treino, percebi que nem todos têm acesso a isso, e é preciso ter sensibilidade. Tento ser cuidadosa, evitando polêmicas. Hoje uso as redes de forma mais profissional, mas sei o quanto é importante dar voz a boas causas. Consciência e responsabilidade são essenciais.
Se eu tivesse a chance, focaria na defesa dos direitos das pessoas com deficiência e na melhoria da educação. A educação pública no Brasil tem enormes deficiências em recursos e qualidade. Muitos políticos não olham com a devida atenção para as pessoas com deficiência, nem para a educação. É urgente falar das desigualdades nessas duas áreas. Também me preocupa a exclusão que ainda enfrentamos. Muitos nem sabem que existem recursos acessíveis. Precisamos discutir mais isso, mas os temas seguem invisibilizados.
Após minha carreira esportiva, senti o vazio que ela deixa. Para muitos atletas, esse momento é duro. Mas vi nisso a chance de retomar os estudos, algo que sempre adiei. A pandemia me deu tempo para iniciar o curso de Direito, e tem sido gratificante. A educação abre portas e quero usar minha experiência no esporte para ajudar outras pessoas. Ensinar crianças sobre a importância do estudo e do esporte pode transformá-las assim como o judô me transformou.
Acredito que uma vida plena vai além do conforto material. É sobre educação, consciência política e responsabilidade social. Precisamos de uma educação melhor — para crianças e adultos. É essencial entender não só nossas necessidades, mas também as dos outros. Temos que construir uma sociedade em que as pessoas se importem com o bem-estar coletivo, e não apenas com o individual. No Brasil, ainda se troca voto por cesta básica, e isso é reflexo da falta de educação política. Uma vida digna exige educação que forme cidadãos conscientes, capazes de decidir e contribuir para o bem comum.”
Lutando com a garra que a consagrou no parajudô, em cada combate Lucia representa o Brasil com orgulho © Emanuele Di Feliciantonio / FIJ
Ligando sua experiência como atleta de alto rendimento com a vivência fora dos tatamis, Lucia relembra como se sentiu ao participar dos Jogos de Paris:
“Cheguei em Paris com receio, porque ouvi muitas críticas sobre a estrutura. Mas fui surpreendida positivamente. A Vila Paralímpica era acessível e consegui dormir bem. O transporte, no entanto, foi um desafio por causa da quantidade de bicicletas e patinetes nas ruas. O pior foi um caminho com escadas que parecia um parquinho infantil — não era acessível e representava risco.”
Ao comparar países como França e Brasil, ela reconhece que a estrutura francesa é mais avançada em acessibilidade e inclusão, mas mantém o otimismo. “Vejo grande potencial no Brasil. Ainda estamos desenvolvendo nossos sistemas, mas acredito que com o tempo teremos avanços e mais oportunidades para as pessoas com deficiência.”
E conclui deixando um propósito que move sua vida. “Quero ajudar os outros — nada é mais gratificante do que isso. Tenho paixão por retribuir e pretendo continuar ajudando, especialmente quem tem alguma deficiência. Se eu puder fazer a diferença na vida de alguém, farei.”
Lucia da Silva Araujo carrega experiência, conhecimento e, acima de tudo, uma sensibilidade humana que pode contribuir muito para construir uma sociedade onde a deficiência não seja vista como fraqueza, mas como força.
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