O que está acontecendo com o judô de competição?

Após vencer a final do Grand Slam de Antalya 2024, Uta Abe (JAP) dá autógrafos para os fãs © Kulumbegashvili Tamara

Hoje, muitas lutas são decididas apenas por shidôs, alguns deles como estratégia, ou seja, atletas que treinam para ganhar assim, e não mais por ippon.

Por Wagner Vettorazzi
14 de abril de 2024 /Curitiba (PR)

Por que não vemos mais ou vemos muito pouco, em competições, técnicas como uchi-mata, harai-goshi, hane-goshi, tai-otoshi e sasae-tsuri-komi-ashi, entre outras?

E pior que isso: vemos muitas lutas serem decididas apenas por shidôs (advertências), alguns dos quais utilizados como estratégia, ou seja, por atletas que treinam para ganhar a luta assim, e não mais pela busca de pontuação e do ippon.

Arbitragem comprometida

Não vemos mais a arbitragem com autonomia de atitude para marcação da pontuação ou de todo o processo de desenvolvimento da luta. O árbitro (único em cima do tatami) fica esperando, em muitos momentos, a mesa da arbitragem de vídeo se manifestar, interferindo quase sempre em tudo o que acontece na luta.

E depois de tudo concluído, em alguns casos nem atletas nem técnicos, e muito menos o público em geral, conseguem entender o que de fato aconteceu.

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Triste, muito triste isso para o judô. Nós, de uma geração antiga, que vimos nossos ídolos lutarem sempre em busca do ippon, lamentamos que o judô tenha chegado a esse nível. E isso ocorre em âmbito mundial, o que nos põe a pensar aonde isso irá levar nosso querido judô, hoje ensinado apenas como esporte por uma maioria de professores.

Como esporte o judô fica cada vez mais pobre, ou menor, porque vemos mentiras nos resultados, as quais afrontam os reais objetivos da luta, muito além da filosofia e dos princípios que estão sendo jogados literalmente na lata de lixo.

“O que realmente interessa hoje é apenas vencer, mas vencer a qualquer preço, mesmo que seja sem praticar judô.”

O atleta finge que ataca, o árbitro vê que não houve o mínimo de intenção de buscar a pontuação, mas mesmo assim, embasado nas atuais regras da Federação Internacional de Judô (FIJ), pune o outro que sequer sofreu o menor risco de ser derrubado.

Cumprimentos feitos de qualquer maneira, apenas com uma péssima atitude corporal, faixas que fora da luta não se encontram mais na cintura amarradas corretamente e nenhum, nenhum, respeito aos mais graduados, porque o que realmente interessa hoje é apenas vencer, mas vencer a qualquer preço, mesmo que seja sem praticar judô.

O judô é uma arte marcial e o que ele traz disso é o mais importante para a formação do ser humano, do seu praticante em especial, que são as virtudes e o comportamento de seus praticantes.

Se esquecermos estes valores e ensinarmos apenas pela via de esporte, estaremos contribuindo para que o judô de verdade venha a acabar um dia, restando apenas o judô de quem ganha e de quem perde. Triste realidade que estamos vivendo dentro do judô mundial.

Mas a explicação que pode vir depois destas palavras é: “Não é bem assim, vemos muitos ippons, muitas técnicas nas competições”. E eu replico: Que técnicas? Seoi-otoshi, ura-nage, kata-otoshi e mais o quê?

“Mas naquele grand slam teve um ko-uchi-gari. Teve também um o-uchi-gari, uchi-mata e um o-soto-gari.” Verdade, cinco lutas vencidas com técnicas de um total de mais de 200 lutas. É essa a nossa referência para chegar ao ippon?

O alemão Erik Abramov concede autógrafos e faz selfies com fãs no Grand Slam de Antalya 2024 © Kulumbegashvili Tamara

Mas por que será que não vemos mais a busca das técnicas?

Quando o atleta faz um seoi-otoshi (e entenda-se como seoi-otoshi o seoi que se faz com um ou dois joelhos no chão) não importa se teve kuzushi e tsukuri, o que importa é que nesse momento ele mostrou para o árbitro que “fez uma entrada de golpe”. Então o outro deve ser punido – e mais, nessa técnica (não importa como foi feita) aplicada dessa forma o atleta não permite que o outro lute e corre pouco risco de levar um kaeshi-waza (técnica de contragolpe).

Para quem realmente estuda judô, por exemplo o nage-no-kata, entende que a forma como estão executando o ura-nage nas competições vem na contramão de tudo que nos foi deixado para preservar a integridade dos dois lutadores. Tem de haver uma lesão, às vezes séria, para que a FIJ intervenha, no caso sempre para o ano seguinte, com novas regras.

O que é o kata-otoshi, já que não aparece na lista de nomes de técnicas de nage-waza do Kodokan? O kata-otoshi nasceu como renraku-henka-waza de kata-guruma para uki-waza, justamente quando quem recebe o kata-guruma faz força para baixo para não ser carregado e nessa hora, como sequência, o tori mantém a mão na perna e se atira no tatami executando uki-waza. Mas a FIJ proibiu fazer técnicas pegando abaixo da linha da cintura, e então, para vencer a luta, em vez de se procurar uma das técnicas extremamente estudadas por Jigoro Kano sensei, cria-se outro caminho. Por exemplo: fazer o kata-otoshi sem pegar na perna, não importando se o adversário vai cair de cabeça ou de ombro.

Mas uma competição não é assim? Afinal é uma luta, não é? Acidentes que venham a acontecer, por ser uma luta corpo a corpo, fazem parte de todo evento competitivo. Mas quando se sabe que buscar essas técnicas alternativas – por pobreza de acervo de técnicas de quem executa – já leva o adversário a uma possível lesão, fica difícil continuar a ver e a conviver com as competições que, na busca por atalhos midiáticos, paulatinamente determinadas técnicas foram sendo desmembradas, a ponto de perderem a conexão com tudo aquilo que no passado conhecíamos como judô.

“É por isso que não se tenta mais jogar e fazer a técnica na sua plenitude, porque o medo de levar um ippon é muito maior que o desejo de jogar de ippon.”

O que deve ser ensinado, e não se ensina mais, é a busca pelo ippon com técnicas que muitos desconhecem, não sabem que existem, passam a conhecer muitas vezes quando submetidos a um exame de graduação e depois esquecem simplesmente porque não praticam.

Quando se busca o ippon dando as costas para o adversário para fazer um harai-goshi ou um uchi-mata, por exemplo, é claro que se corre o risco de levar um kaeshi-waza e perder a luta de ippon. E é por isso que não se tenta mais jogar e fazer a técnica na sua plenitude, porque o medo de levar um ippon é muito maior que o desejo de jogar de ippon.

Quando se está ganhando uma final – seja olímpica, seja mundial, nacional ou estadual – de wazari (leia-se uazari), é perfeita a intenção de não se colocar em risco de receber um kaeshi-waza e perder a luta. Administrar essa luta pode, talvez, ser considerado normal; agora, lutar sempre assim, em qualquer ocasião e sem ter nenhuma pontuação a favor, administrando para que o outro leve um shidô, é lutar sem entender se pode ou não jogar o outro de ippon, limitando o judô à pobreza de ações e iniciativas que vemos hoje.

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O pior é que para as mentes brilhantes que buscam abreviar os combates para atender aos interesses da mídia, em detrimento da qualidade técnica daquilo que entregamos, transformando a nossa modalidade numa gigantesca colcha de retalhos, tudo isso é absolutamente normal.

Esse enfoque equivocado compromete não apenas a integralidade técnica do judô e a integridade física dos competidores, mas também sua essência filosófica, transformando-o num espetáculo vazio de significado, no qual a busca pela vitória rápida supera a jornada de autoaperfeiçoamento e respeito mútuo que deveria ser o cerne do judô.

É fundamental que reavaliemos nossas prioridades e nos comprometamos a preservar e promover os verdadeiros valores deste nobre esporte, antes que se percam irremediavelmente no emaranhado de interesses comerciais e midiáticos.