Os samurais, o seppuku e o Budô

Credita-se ao seppuku à necessidade de “lavar a honra” conspurcada © Dannis Duan

A prática do seppuku iniciou-se, provavelmente, em meados do século XII, perdurando até a Restauração Meiji, de 1868, quando acabou proibida

Budô
22 de fevereiro de 2021
Por FERNANDO MALHEIROS FILHO
Curitiba – PR

Todo aquele que tem seu interesse voltado para a história do Japão conhece e reconhece a importância dos samurais, quer na construção histórica, quer na formação cultural daquele povo que, sem desdenhar outras origens, plantou a principal semente das artes marciais que hoje espalha seus galhos por todo o planeta.

O surgimento dos samurais deriva de grande número de circunstâncias próprias ao Japão medieval, cuja especulação transcende o espaço destas linhas. Para o raciocínio, basta lembrar que, originalmente, eram “servos da gleba”, sob o comando do senhor feudal a que geograficamente estavam submetidos, paulatinamente transformados em soldados, guerreiros na peculiar conformação dos samurais.

Toda formação guerreira envolve violência e arbitrariedade. Essa a linguagem que o ser humano aprende a manifestar quando apreendido pela violência ambiental. Foi necessário, para coibir os excessos, o surgimento do código de conduta, o Bushido, que se amparava no sincretismo entre budismo, xintoísmo e confucionismo.

Por essas características, os samurais desenvolveram especial atração pela honra, relativizando a vida, mercê da oportuna influência do zen-budismo, que prega a impermanência e a evanescência do ser, de grande valia àqueles que quase certamente iriam morrer.

Dentre os comportamentos que derivaram da fervura neste caldeirão cultural, o mais visível foi a prática do seppuku (harakiri). Elevado ao alto padrão de honra, os samurais dele se serviam para limpar sua honorabilidade, com a dolorosa morte pela evisceração. O ritual sangrento passava pelo corte no baixo abdómen até que as vísceras ficassem à mostra. O suicida deveria ser acompanhado de seu kaishakunin, a quem cabia, após o esventramento, a decapitação do imolado.

A prática do seppuku iniciou-se, provavelmente, em meados do século XII, perdurando até a Restauração Meiji, de 1868, quando acabou proibida.

O mais hábil e pragmático dos generais-samurais, Oda Nobunaga, pôs fim à própria vida, no centro das guerras samuraicas do século XVI, quando, traído por um de seus generais, Akechi Mitsuhide, não viu alternativa senão expor suas vísceras no ritual da morte nipônico.

No Japão, ficou célebre o episódio dos 47 ronins, impedidos de acompanhar seu líder, Asano Naganori, no ritual da morte. Rebelaram-se e avançaram contra o desafeto do chefe, Kira Yoshinaka, matando-o pela decapitação, para depois eles próprios se imolarem, coletivamente, pelo seppuku.

Não se sabe até onde essa história é lendária ou fiel aos acontecimentos, mas sua celebridade explica a importância cultural do seppuku.

Ainda no século XX, a prática encontrou surpreendentes adeptos. O famoso escritor japonês Yukio Mishima, após tentar o desastrado golpe de estado de 25 de novembro de 1970, desventrou-se praticando o seppuku. Não faltou sequer o assistente, na pessoa de Hiroyasu Koga: expôs as vísceras e perdeu a cabeça.

Ao final da Guerra do Pacífico, muito militares japoneses o fizeram, não aceitando a rendição. Ainda em 2001, o ex-judoca Isao Inokuma pôs fim à própria vida, aos 63 anos, mediante a morte ritual, provavelmente humilhado pelo malogro de seus negócios.

No Japão atual, a prática não tem mais sentido; ficou no passado, nas circunstâncias históricas que provavelmente não se repetirão.

Mas é necessário considerar que o Budô, ainda professado pelos praticantes das artes marcais, ecoa aqueles postulados, dentre os quais o seppuku era a prática mais evidente, radical e intensa.

Credita-se o seppuku à necessidade de “lavar a honra” conspurcada. Acreditava-se que expor as vísceras significava demonstração de pureza daquele que não teme demonstrar o que guarda no interior.

Não se trata mais de levar o praticante à morte, para ele mesmo, naquele átimo final, tomar consciência de sua própria natureza e a verdade última que ela encerra, mas se servir da metáfora que aquele derradeiro gesto significa.

Se o seppuku ainda vive como metáfora, e no sentido de que a prática das artes marciais, pelo caminho que representam (Dô), tem destino no mesmo propósito do conhecimento último do ser sobre si mesmo, temos que o praticante que efetivamente quiser atingir a transcendência, alcançando a verdade última que ela concentra, deverá cotidianamente “expor suas vísceras” e nelas encontrar a pureza perdida pela contaminação da existência terrena.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões