Paixão pelo taekwondo: mestre Amadeu revelou campeões e formou cidadãos nos tatamis

Fábio Costa, presidente da FTKFMS, entrega ao mestre Amadeu o certificado de promoção emitido pela CBTKD, em 28 de abril © Divulgação

Aos 88 anos, pioneiro do taekwondo em Mato Grosso do Sul é promovido ao 8º dan em cerimônia realizada em Campo Grande, cercado pelo carinho dos filhos, antigos alunos e amigos de jornada.

Fonte Silvio de Andrade / Campo Grande News
Curitiba, 5 de junho 2025

Com olhar compenetrado na TV, assistindo a uma competição de judô, um de seus passatempos hoje, grão-mestre Amadeu Dias de Moura, 88, acompanha no íntimo de seu silencio a movimentação de pessoas na sala da casa da filha Jacqueline (Jaque), ao lado da antiga academia, centro de Corumbá. Ele é o foco das atenções, entre câmeras, troféus, medalhas, acervo de imagens, diplomas e o velho kimono de taekwondo. Seus olhos atentos brilham.

Documentário que está sendo produzido vai perpetuar uma história de vida dedicada ao esporte, em especial às artes marciais, e ao próximo – o legado de um homem que introduziu o taekwondo em Mato Grosso, a partir de Corumbá, em meado de 1970, após se tornar um dos primeiros faixas-pretas do Brasil, no Rio de Janeiro, onde serviu a Marinha. Uma história que se confunde com o amor àquelas crianças e jovens que ajudou a formar como atletas e cidadãos por décadas.

Amadeu ao lado dos filhos Jacqueline e Amadeu Júnior e do mestre Young Min Kim © Divulgação

Com a morte da esposa (professora Enilda), há três anos, o mestre agravou um processo de depressão que começou com o susto após o acidente envolvendo o neto Felipe Battesti (filho de Jaque), 38, major da Aeronáutica e piloto da Força Aérea Brasileira, em 2018. Ele se salvou ao se ejetar na queda da aeronave, no Rio. Amadeu sofreu um tipo de bloqueio onde afetou a fala, suas respostas são curtas. Na maioria das vezes, não se esforça a comunicar-se com clareza.

“Papai está saudável fisicamente, o problema é mental. Está mais para ouvir, fala quando quer”, resume a filha, turismóloga, envolvida agora no projeto do documentário sobre sua trajetória, com produção do ator e ativista cultural de Corumbá Salim Haqzan. A ideia é preservar o legado do velho mestre, com depoimentos de ex-alunos, amigos e dirigentes. O curta de 40m será disponibilizado nas redes sociais e exibido em festivais.

A entrega da nova graduação ocorreu durante competição em Campo Grande e foi prestigiada por diversos alunos formados pelo mestre Amadeu © Divulgação

Maior graduação – “É um investimento familiar, de resgate, estamos perdendo pessoas e memórias”, diz Salim, 54. Os depoimentos são carregados de emoções. Hoje dono de academia de judô na cidade, o professor Gehad Saleh, 58, foi aluno do mestre e fala com os olhos mareados: “uma pessoa singular. Sua academia foi um lar para mim por mais de 20 anos, meu porto seguro, de superação. Seu lado humano era muito forte, insuperável”.

Reconhecido e celebrado dentro e fora do país como um dos grandes expoentes do taekwondo brasileiro, mestre Amadeu recebeu recentemente, em Campo Grande, o 8º dan, graduação de mestre e nível elevado de conhecimento e habilidade avançada no esporte, cujo grau máximo é o 9º dan. Título conferido pela Confederação Brasileira de Taekwondo (CBTKD) e Federação de Taekwondo do Mato Grosso do Sul (FTKDMS).

https://www.originaltatamis.com.br/

Filho de peixe…

O legado deixado por mestre Amadeu na formação humana e esportiva de centenas de alunos atravessa gerações — e tem no próprio filho, Amadeu Júnior, um de seus principais exemplos. Professor kodansha shichi-dan (7º dan) em judô, ele iniciou sua jornada nos tatamis ainda criança, levado pelo pai, então militar da Marinha do Brasil no Rio de Janeiro. A educação rígida e o senso de disciplina transmitidos em casa foram potencializados pela vivência no Judô Clube Flores de Nilópolis, sob a tutela dos professores José e Nilson Flores, expoentes do judô tradicional. Ali, valores como respeito, hierarquia e autocontrole tornaram-se fundamentos permanentes de sua formação.

Na academia em Corumbá com seus alunos: dedicação que transcende os tatamis, moldando atletas e cidadãos © Divulgação

Com sólida trajetória nacional e internacional, Amadeu Júnior atuou por quase uma década na Confederação Brasileira de Judô, integrando delegações em duas edições dos Jogos Olímpicos na gestão Paulo Wanderley Teixeira. No exterior, treinou as seleções nacionais do México e de El Salvador, e foi peça-chave no departamento técnico da Confederação Pan-Americana de Judô (CPJ), a convite do atual presidente Carlos Zegarra entre 2020 e 2025. Também fez parte da diretoria esportiva da Federação Internacional de Judô (FIJ), ao lado do diretor de Esportes da entidade, Vladimir Barta.

Hoje, segue seu trabalho técnico como head coach da seleção paraguaia, missão que aceitou em janeiro de 2025 a convite de Sergio Alejandro Kanonnikoff, presidente da Federação Paraguaia de Judô (FEPAJ). Em Assunção, Amadeu Júnior coordena a reestruturação do judô paraguaio com foco na formação de atletas e na consolidação institucional da federação. Seu trabalho dá continuidade à trajetória do pai, que formou não apenas milhares de faixas-pretas, mas também homens e mulheres preparados para a vida, com base em valores sólidos e comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa, ética e harmoniosa.

Professor Amadeu Júnior (à direita) e Vladimir Barta (no centro), durante evento da Comissão de Esportes da FIJ em 2024 © Divulgação

Seu percurso, repleto de conquistas e responsabilidades, é reflexo direto da influência paterna — como ele próprio demonstra ao sintetizar, com afeto, o legado do pai em sua vida: “Talvez sem tanto rigor eu não tivesse a educação e a disciplina que carrego comigo até hoje. E tudo isso foi sempre equilibrado com muito amor.”

Esse amor, aliado a uma postura firme e ética, marcou profundamente a atuação de mestre Amadeu, que formou milhares de faixas-pretas ao longo de sua jornada — não apenas atletas, mas homens e mulheres preparados para a vida. Seu legado ultrapassa os limites do dojô: está presente em cada ensinamento transmitido, em cada gesto de respeito cultivado e em cada cidadão consciente que ajudou a moldar. Com seu trabalho silencioso e transformador, mestre Amadeu contribuiu decisivamente para a construção de uma sociedade mais justa, harmônica e guiada por valores sólidos.

Aulas de reforço

Após passar para a reserva da Marinha, Amadeu (nasceu em Santo Antônio de Leverger, MT) dedicou-se ao taekwondo integralmente, se revelando uma pessoa humanitária, dedicada ao acolhimento dos vulneráveis e na formação de valores fundamentais (disciplina, respeito e perseverança) dos jovens que frequentavam sua academia. Ajudou muitos deles a sair das drogas e do ócio, se tornando grandes campeões dentro e fora dos tatamis.

Mestre Amadeu ao lado do ex-aluno Roman Rojas — hoje responsável por uma academia na Capital — e sua filha Jaque, em momento de reencontro e gratidão © Divulgação

“Ele acolhia a todos, quem podia pagar ou não a academia”, lembra Jaque, 60. “Não visava lucro, por amor ao esporte; mais de 70% das turmas da academia tinham bolsa. Com o dinheiro da locação de um terreno em Ladário, pagava o aluguel da academia e ainda tirava dinheiro do bolso para custear as viagens da equipe para competir”, cita. “Minha mãe era parceira e até dava aulas de reforço gratuitamente para as crianças do dojô.”

Seu contemporâneo de jornada, grão-mestre (9º dan) coreano Young Min Kim, 80, um dos precursores do taekwondo no Brasil, nos anos de 1970, e um dos avaliadores do rigoroso exame que garantiu a faixa preta a Amadeu, no começo de tudo. Ainda morando no Rio e falando pouco português, Kim abre seu coração: “tenho uma grande admiração pelo mestre Amadeu, um amigo de longo tempo. Prestou relevantes serviços ao esporte do Brasil”.

banner