Posso me apresentar? Meu nome é Jigoro Kano

Professor kodansha juu-dan (10º dan) Jigoro Kano

Gichin Funakoshi introduziu e popularizou o karatê nas principais ilhas do Japão, mas foi a convite de Jigoro Kano que o mestre okinawano permaneceu em Tóquio e consolidou sua arte marcial

História & Budô
4 de maio de 2020
Por PAULO PINTO I Fotos GUETTYIMAGES e PINTEREST
Curitiba– PR

Foi por meio de um artigo escrito por Andreas Quast e publicado no Ryukyu Bugei em 26 de junho de 2016 que pudemos encontrar algumas evidências claras do grande apoio que Jigoro Kano prestou ao desenvolvimento e à consolidação do karatê e ao Budô como um todo. Assim como da amizade que, no início do século passado, uniu os criadores das três modalidades que formam o pilar das chamas artes marciais modernas do Japão: Morihei Ueshiba (aikidô), Gichin Funakoshi (karatê) e Jigoro Kano (judô).

Desnecessário falar que a mudança de Gichin Funakoshi para o a capital e suas atividades e publicações foram um marco no desenvolvimento do karatê moderno. Mas será que realmente foi ele que introduziu o karatê em Honshu, principal ilha do Japão? Num sentido mais amplo, é muito difícil argumentar contra isso.

No entanto, o shihan Gichin Funakoshi não foi o primeiro a levar o karatê para fora de Okinawa. Nem era um empreendimento individual independente ou desapegado dos acontecimentos sociais da época, e isso é verdade para o karatê como um todo.

Shihan Gichin Funakoshi (1868-1957) fundador do Karatê Shotokan e sensei Masatoshi Nakayama (1913-1987)

De fato, parte dos círculos de karatê – embora demonstre respeito a qualquer momento – parece subestimar completamente a influência de uma pessoa: Jigoro Kano. Sem entrar em muitos detalhes sobre a influência e a autoridade que Kano exercia na época – não apenas para o karatê de Okinawa, mas para o Budô do Japão como um todo e os esportes em geral – listaremos alguns eventos que foram importantes para o karatê e estão direta ou indiretamente relacionados ao professor Kano.

Introdução karatê em Honshu

No que se refere à (primeira) introdução do karatê na maior ilha japonesa, já em 1908 seis alunos da Escola Secundária de Shuri participaram da 10ª Reunião de Demonstrações Marciais da Juventude (Dai-jū-kai Seinen Daienbu Taikai). Lá eles praticaram karatê diante de Jigoro Kano, assim como de outros visitantes ilustres. Essa demonstração ocorreu apenas alguns anos após o karatê se tornar uma disciplina obrigatória na Escola Secundária de Shuri e no mesmo ano em que Itosu Anko encaminhou seus 10 Preceitos do karatê para chamar a atenção do Ministério da Educação. Na época, sensei Kano era diretor da Escola Normal Superior de Tóquio (Tokyo Shohan Shihan Gakko), que atuava sob o comando do mesmo Ministério da Educação.

Em 1910, a convite de Jigoro Kano, seis alunos da Escola Secundária Shuri e seus principais professores visitaram o Instituto Kodokan em Tóquio. Durante cerca de duas horas, eles deram explicações sobre o karatê, fizeram exibições de kata e quebraram pranchas de madeira diante de Jigoro Kano e outros mestres do alto escalão do instituto e também de outras autarquias.

No ano seguinte, em junho de 1911, ocorreu uma competição de judô dos faixas-vermelhas e brancas na Escola Normal Shuri. Esse torneio, denominado kohaku-shiai (紅白合), foi criada por Jigoro Kano, e em 1911 já era um evento tradicional no Kodokan. Consta que também foi adotado na Escola Normal Shuri, em Okinawa, em 1911, ainda durante a vida de Itosu Anko.

Motobu Choki (1870-1944) mudou-se para Akasaka em 1921 e Funakoshi foi para Tóquio em 1922. Jigoro Kano novamente ajudou Funakoshi em várias ocasiões e em vários assuntos.

Jigoro Kano com dois judocas na Alemanha em 1933 – Foto Lothar Ruebelt

Alguns anos depois, em 1927, Jigoro Kano visitou Okinawa, onde realizou um intercâmbio com mestres de karatê e deu uma palestra sobre judô. Entre as pessoas que se manifestaram diante de sensei Kano estavam Miyagi Chojun e Mabuni Kenwa, e os dois artistas receberam os elogios de Kano. Portanto, supõe-se que a mudança de Mabuni para Tóquio possa ter sido motivada por essa reunião e pelos elogios de Kano.

Acredito que os exemplos acima devem dar motivos suficientes para reavaliar os papéis históricos de vários indivíduos, bem como das instituições, no processo de propagação do karatê no Japão central – e particularmente o papel de Jigoro Kano. Um dado importante é que o primeiro dojô de judô em Okinawa foi inaugurado em 1899 e, provavelmente tenha sido o primeiro das chamadas artes marciais modernas nessa ilha.

Consolidação do karatê no Japão

Somente em 1921, o então príncipe herdeiro Hirohito, em viagem à Europa, fez escala em Okinawa, terra do karatê, e assistiu a uma demonstração liderada por Funakoshi, ficando muito impressionado. Por causa disso, no fim desse mesmo ano, Funakoshi foi convidado a fazer outras demonstrações em Tóquio, numa exibição atlética nacional. O convite foi de pronto aceito, acreditando ser aquela uma ótima oportunidade para divulgar sua arte.

A nova demonstração de kata realizada na capital do Japão foi um sucesso e culminou no surgimento de muitos outros convites de demonstrações e de ensino regular do karatê. Funakoshi pretendia retornar logo para sua terra natal, mas no decorrer dos acontecimentos foi ficando em Tóquio, a principal ilha do Japão.

Uma das pessoas que pediram para que Funakoshi ficasse foi Jigoro Kano, criador do judô e presidente do Instituto Kodokan, de quem se tornaria muito amigo. Funakoshi aceitou permanecer mais alguns dias em Tóquio para demonstrar suas técnicas, ensinando sua arte no próprio Instituto Kodokan. Naquele tempo havia forte preconceito dos japoneses de Honshu contra tudo e todos que vinham de Okinawa, uma ilha encravada no mar territorial do Japão.

Nos anos 1930, shihan Jigoro Kano faz demonstração de katame-waza e kansetsu-waza finalizando o uke com ude-hishigi-juji-gatame

O professor Jigoro Kano também o convidou para fazer uma demonstração reservada no Instituto Kodokan e sugeriu que trocasse o karategi pelo judogi, diminuindo assim o preconceito contra o karatê okinawano.

Este encontro foi tão marcante e importante para o shihan Funakoshi que ele acrescentou ao seu karatê algumas técnicas de judô que aprendera com sensei Kano, como o de-ashi-harai. Shihan Jigoro Kano tornou-se amigo íntimo do sensei Funakoshi e o apresentou às pessoas certas nos círculos sociais da elite japonesa e o ajudou a demonstrar o karatê ao imperador. Tudo isso foi decisivo para que o karatê fosse aceito e respeitado em todo o Japão.

Como prova de sua gratidão, até o fim de sua vida, Gichin Funakoshi inclinava-se todas as manhãs em direção ao Instituto Kodokan, em memória ao seu amigo já falecido. E sempre que passava em frente ao Kodokan fazia questão de parar, tirar seu chapéu e dizer para quem o acompanhava: “Sem meu amigo shihan Jigoro Kano eu não estaria aqui hoje!”.

Posteriormente shihan Gichin Funakoshi fundou a Nihon Karate Kyokai (JKA), maior escola de karatê de todos os tempos, e faleceu em 26 de abril de 1957, eternizando-se mundialmente como a principal referência do karatê moderno.

O conjunto da obra de Jigoro Kano transcende o legado deixado para as inúmeras de gerações de judocas que até hoje trilham o caminho deixado por ele

Além de manter amizade com demais líderes de modalidades de luta – como Gichin Funakoshi e o sensei Morihei Ueshiba, o criador do aikidô –, Jigoro Kano trabalhou arduamente pelo esporte como um todo e pelo olimpismo. Legou-nos vários manuscritos, em geral assinados com pseudônimos, entre os quais um dos mais usados era Ki Itsu Sai, que significa tudo é unidade.

Sensei Kano também era poliglota, pois além do japonês falava francês, alemão, inglês e espanhol. Lamentavelmente veio a falecer em 4 de maio de 1938, vítima de problemas pulmonares, a bordo do transatlântico Hikawa Maru, quando voltava do Cairo, onde havia participado da assembleia geral do Comitê Olímpico Internacional (COI) e foi defender a exitosa candidatura japonesa para sediar os Jogos Olímpicos de verão de 1940 e de inverno de 1942.

Não houve tempo suficiente para presenciar os desdobramentos de tudo que criou e ainda estava por vir, mas ele sabia que seria perpetuado no projeto que legou à humanidade. Ao lembrar os 82 anos de seu falecimento neste 4 de maio, o mundo ocidental começa a compreender a extensão e a amplitude de algo que, para os leigos, é apenas mais um esporte olímpico.

“Quando eu morrer, o judô Kodokan não morrerá comigo, porque muitas coisas virão a ser desenvolvidas se os princípios de minha arte continuarem sendo estudados”, previu shihan Jigoro Kano.

Sensei Jigoro Kano jogando o uke de o-goshi, um dos seus tokui-wazas