Professora e escritora, Aline Fidelman aponta irregularidades na gestão do karatê brasileiro

A professora Aline avalia que não há avanços em nenhum aspecto, pois a CBK prioriza apenas o aumento de suas receitas, deixando de lado a qualidade dos serviços oferecidos aos filiados © Amixstudio / Depositphotos

Praticante e estudiosa da arte, Aline clama por ética e transparência e reforça a importância de preservar os pilares filosóficos e técnicos da arte marcial.

Por Paulo Pinto / Global Sports
7 de novembro de 2024 / Curitiba, PR

Recentemente, o portal Extra publicou uma entrevista com Manuel Varella, ex-dirigente da Federação de Karatê do Estado do Rio de Janeiro (FEKERJ), a primeira federação de karatê do Brasil, originalmente denominada Federação Fluminense de Karatê (FFK), fundada em 5 de julho de 1969.

Na entrevista concedida ao jornalista Leonardo Freitas, o professor roku-dan (6º dan) expõe as vísceras de uma entidade que, mesmo inserida no programa olímpico, ainda mantém estatuto e normas que regiam o esporte nos anos 1950. Contudo, ainda mais inadmissível é a postura do Comitê Olímpico do Brasil (COB), que finge não conhecer o autoritarismo e o coronelismo praticados pelos dirigentes de uma modalidade alicerçada em rígidos conceitos do Budô, como honra, caráter e retidão.

Surpresa com a coragem do faixa-preta carioca, a escritora Aline Fidelman comemorou a atitude e parabenizou o ex-dirigente por sua bravura, aproveitando para manifestar sua posição em suas redes sociais. Faixa-preta ni-dan (2º dan), Aline se desfiliou da Confederação Brasileira de Karatê (CBK) este ano, por não acreditar mais na capacidade da entidade de gerir a modalidade com a devida isenção e, principalmente pela total falta de comprometimento de suas lideranças com a filosofia da arte marcial. Contudo, ela jamais se distanciou da arte das mãos vazias, uma de suas grandes paixões.

Antes de relatar o desabafo da escritora, é importante apresentar quem é a professora Aline. Baiana de Ilhéus, ela é graduada em gastronomia pela Universidade Anhembi Morumbi e pós-graduada em gestão da segurança de alimentos pelo Senac. Sua formação no karatê é alicerçada no legado de um dos maiores gênios da arte, o sensei baiano de Santo Amaro, Denílson Caribé.

Como escritora, Aline já publicou cinco livros sobre karatê: Kihon Kata: Guia de Fundamentos Shotokan, Guia Ilustrado de Karatê, Sansai Kata: Genseiryu Karatê-do, Kata Shotokan: Guia Completo em Português e Shiai Kumitê: Guia Ilustrado Baseado nas Regras WKF.

Falsos karatecas como dirigentes

A Confederação Brasileira de Karatê, fundada em 1987, é a entidade responsável pelo desenvolvimento da modalidade e, além de estar filiada à World Karate Federation (WKF), representa o esporte junto ao Comitê Olímpico do Brasil.

“Sei dos projetos desenvolvidos ou idealizados no passado, utilizados na fundação e construção da CBK, muitos deles de autoria do mestre Denílson Caribé. Propostas que incluíam a exigência de formação universitária e o san-dan (3º dan) para os faixas-pretas que almejavam ser senseis e abrir um dojô, com o sábio intuito de estimular o estudo e a formação profissional dos karatecas. Naquela época, existiam cursos preparatórios para instrutores de 1º e 2º dans, primeiros socorros, arbitragem e avaliação, entre tantos outros projetos para que o karatê brasileiro fosse gigante e seguisse a filosofia marcial em sua integralidade e integridade máxima.”

Aline explica que não luta contra a CBK, mas contra chapas corruptas e gestores que chegam à confederação, apropriam-se de tudo e vão embora sem deixar nenhum legado para a entidade. “Não significa que eu seja contra uma instituição nobre e cheia de história, e não pretendo que esta história se acabe.”

A faixa-preta de Ilhéus entende que muitos avaliarão seu posicionamento de forma negativa, mas, segundo ela, seu protesto é equivalente ao de quem critica o presidente da República, órgãos públicos, dirigentes e políticos em geral. “Quando exercemos nosso direito e cobramos melhorias na condução da coisa pública, isso não quer dizer que queremos que o Brasil ou os Estados se acabem ou afundem.”

“Queremos evoluir em aprendizado filosófico e técnico dentro dos estilos e linhagens que pertencemos, e não apenas no aprendizado esportivo, um traço fora da tríade que compõe o treinamento fundamental e funcional do karatê: kihon, kata e kumitê.”

Aline defende a eleição de karatecas ou budokas de verdade para dirigirem as entidades de administração. Pessoas que sigam as premissas e filosofias do karatê e façam a gestão alinhada a padrões modernos, baseados em compliance, transparência e responsabilidade. Ela acredita que esses princípios não apenas preservam a essência do Budô, mas também fortalecem a credibilidade e a eficiência das organizações, promovendo uma administração ética e orientada ao bem comum.

Ela salienta que uma parcela significativa dos filiados é composta por praticantes, ou seja, karatecas que não são atletas de competição ou que, como ela, são ex-atletas. Esses praticantes, segundo Aline, não têm motivos para continuar financiando um cenário competitivo marcado por visível e risível incompetência técnica nos critérios esportivos, especialmente em um ambiente interestilos.

“Mas, independentemente dos resultados obtidos”, prossegue, “seguirei firme e convicta dos meus ideais e valores como karateca, acreditando na importância da reciprocidade. Meu propósito é dar voz a muitos outros, fortalecendo laços de respeito e colaboração mútua, para que juntos possamos construir um caminho mais justo e alinhado aos princípios do Budô.”

Aline deixou a Confederação Brasileira de Karatê (CBK) porque entendeu que ela não mais presta bons serviços aos seus filiados, sejam eles atletas ou praticantes que seguem os preceitos filosóficos legados por mestres como Gichin Funakoshi (1868–1957), fundador do karatê Shotokan; Chojun Miyagi (1888–1953), fundador do karatê Goju-ryu; Kenwa Mabuni (1889–1952), fundador do karatê Shito-ryu; ou Hironori Ōtsuka (1892–1982), criador do estilo Wadō-ryū. “São homens e mulheres que têm o karatê como filosofia moral e ética no seu dia a dia.”

Sensei Aline Fidelman © Arquivo

Para Aline, a gestão técnica da CBK comete erros grotescos ao não adotar uma banca de instrutores certificados internacionalmente e diretores técnicos diplomados, capazes de compor um programa pedagógico nacional unificado de alto nível para seus filiados, ou mesmo um departamento especial para graduação e manutenção da essência dos estilos, como fez o Japão com a criação da Japan Karatê Federation (JKF).

“Nós, karatecas, queremos evoluir em aprendizado filosófico e técnico dentro dos estilos e linhagens que pertencemos, e não apenas no aprendizado esportivo, um traço fora da tríade que compõe o treinamento fundamental e funcional do karatê: kihon, kata e kumitê.”

Aline ressalta que, embora a CBK arrecade milhões de reais anualmente, não traz representantes e instrutores japoneses, ou mesmo brasileiros devidamente certificados por entidades japonesas, para ministrar cursos de kihon, promover gasshukus anuais e oferecer cursos técnicos para a evolução de kata e kumitê, abrangendo a totalidade das técnicas de mãos, braços, pernas e posturas.

“Ao contrário: repelem nomes como o do professor Antônio de Souza Lima, hachi-dan (8º dan) Shotokan e shichi-dan (7º dan) Genseiryū. Trata-se de um sensei que praticou karatê no Japão por 17 anos, foi aprovado como árbitro classe A, é examinador dentro do Japão e preside hoje o Genseiryū na América do Sul por indicação do seu mestre e, na época, presidente da Genseiryū Butokukai Japão.”

A professora assegura que há no Brasil representantes de diversos estilos e linhagens ainda ativos, muitos deles instrutores outorgados por entidades importantes do Japão. Shihans e senseis como Edson Nakama, instrutor oficial e diretor técnico da ISKF Brasil; Paulo Mota, primeiro ocidental a receber outorga do Japão para representar o estilo Shitō-ryū no Brasil; Yoshizo Machida, da JKA Brasil; Kazuo Nagamine, membro da comissão técnica ITKF Global e JKA; Roberto Sant’Anna, shichi-dan (7º dan) no karatê Shotokan da WTKO e roku-dan (6º dan) na JKA, entre outros estudiosos e escritores, como Paulo Bartolo e Eros Sanches. “Eles poderiam contribuir significativamente na disseminação de informações, na preservação das raízes técnicas dos numerosos estilos e no fortalecimento do karatê nacional em altíssimo nível, sem misturas ou modificações de estilos e linhagens.”

A karateca e escritora enfatiza que a CBK e suas federações tendem a investir apenas em cursos básicos de shōbu kata ou shōbu kumitê (shōbu é o termo mais atual para designar a competição, substituindo o antigo shiai), sem compromisso com a qualidade. Segundo ela, muitos desses cursos são dirigidos e ministrados por atletas, alguns sem a devida graduação, priorizando apenas resultados em competições internacionais e o vigor atlético, em detrimento da responsabilidade e maturidade técnica. Isso, de acordo com Aline, resulta em atletas sem a menor consciência de sua ryū-ha (linhagem) e sem respeito à história de seus estilos. “Repassam apenas cópias e estratégias dos atuais campeões internacionais, com promessas de êxito.”

“Com isso, vemos uma sucessão de katas modificados ou, pior, misturas grotescas de linhagens e estilos. Uma tragédia e vergonha sem precedentes. Espero que muitos mais filiados criem coragem e denunciem não só a CBK, mas também algumas federações que são tão omissas e corruptas quanto ela.”

Acolhimento zero

Aline entende que a CBK busca implantar uma estrutura empresarial, o que, em tese, seria perfeito se fosse funcional em sua totalidade. No entanto, na prática, o único aspecto que realmente opera de forma eficaz são as cobranças financeiras. A reciprocidade, tão esperada pelos filiados, inexiste. Não há acolhimento, seja no atendimento aos filiados, seja em uma arbitragem isenta e responsável. Essa deficiência é agravada pela baixa qualidade e pela falta de funcionalidade dos eventos oferecidos, que são estruturados prioritariamente em torno dos interesses financeiros da confederação, em detrimento das reais necessidades dos milhares de atletas que geralmente são lançados em aventuras que beiram a irresponsabilidade e a negligencia.

“Prova disso são as competições realizadas em cidades que muitas vezes carecem da infraestrutura mínima necessária para acolher eventos com milhares de participantes. Para maximizar a margem de lucro, a confederação opta por realizar campeonatos de todas as categorias de forma conjunta, comprometendo a organização. Diferente do judô, que realiza campeonatos brasileiros separados por faixas etárias, muitas vezes em um ou dois dias, mesmo com um número reduzido de áreas de luta. Já a CBK reúne até três mil atletas em áreas pequenas e mal dimensionadas, executando tudo a toque de caixa. Esse modelo derruba a qualidade técnica dos eventos e também desrespeita os atletas, que acabam relegados a uma experiência frustrante e longe do profissionalismo que deveriam ser contemplados.”

Abuso sexual e moral

“Desejo também que denunciem as federações que admitem pais de alunos com graduação inicial de 5º a 7º kyū em cursos para técnicos, recebendo crachás e atuando como tal. Esses pais circulam nos ginásios e sentam nos kotos para acompanhar os próprios filhos em competições, ocupando um local que deveria ser exclusivo de técnicos devidamente graduados e capacitados para essa função.”

A sensei Aline conclui desejando que mais denúncias cheguem a veículos como o Extra e a Budô. “Que elas exponham os reais problemas que estamos vivenciando, como os casos de abusos sexuais e morais, que nossos dirigentes preferem ignorar, mantendo técnicos e treinadores abusadores no quadro da comissão técnica nacional e internacional, sem nenhuma sanção ou penalidade. Meus parabéns ao denunciante Manuel Varella. Espero que ele seja o primeiro de muitos.”

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