Quando os princípios do judô são violentados

A verdadeira graduação de quem agride é a vergonha — por ferir, humilhar e silenciar quem só deveria receber cuidado e amor © Global Sports

Professor de judô do Rio Grande do Norte acusado de violência contra ex-companheira continua atendendo crianças e jovens.

Por Paulo Pinto / Global Sports
Curitiba, 20 de maio de 2025

Esta é uma reportagem incômoda, por vezes revoltante, mas absolutamente necessária. Porque o judô não é futebol. E não, isso não é uma questão de prestígio ou comparação esportiva: é de postura ética e filosofia.

A modalidade idealizada por Jigoro Kano foi construída sobre valores universais como o respeito, a integridade, o autocontrole e a solidariedade. Por essa mesma razão, não é admissível que alguém que se apresenta como professor de judô — mas cuja conduta viola frontalmente esses princípios — continue atuando e sendo reverenciado, enquanto as denúncias de violência seguem sem resposta adequada no âmbito individual ou judicial.

Infelizmente, isso tem se tornado recorrente em algumas instâncias do judô brasileiro. Casos extremos, como o de Rondônia — onde um professor condenado a mais de 46 anos de prisão por estupro de vulnerável, tendo como vítimas seus próprios alunos — continua atuando como árbitro e sendo indicado a promoções de graduação, escancaram o abismo entre o discurso e a prática. Indicar alguém com esse histórico criminoso para receber a faixa vermelha e branca (roku-dan) é um gesto que, se não fosse trágico, soaria como um deboche à sociedade e aos princípios que norteiam o verdadeiro judô.

Cláudio Cunha do Nascimento, profissional de educação Física e professor de judô san-dan, autor das agressões a sua ex-companheira © Instagram

Antes, porém, em março de 2024 a Revista ProAtiva denunciou o caso protagonizado pelo presidente do CREF22/ES e também faixa preta de judô, Ibsen Pinheiro, que fora acusado por alunas e atletas federadas de assédio sexual e pedofilia. Leia reportagem completa. Fato é que de nada adiantaram as denúncias feitas. Apesar de a FEJ ter agido prontamente determinando que o professor Ibsen seja afastado de qualquer cargo que eventualmente ocupasse na federação, caso fosse aberto inquérito policial ou procedimento administrativo pela comissão de ética e foi isso que aconteceu.

Com base em documento, o diretor jurídico da FEJ, Renan Sales Vanderlei, determinou em 19 de outubro que o Ministério Público fosse oficiado para “ciência e adoção das providências que entender pertinentes”, já que a federação não dispõe de mecanismos investigativos. Na mesma data o presidente da FEJ determinou a execução das ações recomendadas que afastaram o denunciado do cenário capixaba.

Labina Melo com alunos do Projeto Arena do Morro © Arquivo

Agora, os holofotes recaem sobre o Estado do Rio Grande do Norte. Conforme apurado pela reportagem, o professor de judô, Cláudio Cunha do Nascimento, profissional de educação Física e professor de judô detentor da graduação de san-dan e com relevante influência no cenário local, foi formalmente acusado de violência doméstica por sua ex-companheira, Labina Ercílio Barroso Melo, que atuava como colaboradora voluntária em projetos de judô conduzidos por ele.

A voz da vítima

Labina Melo rompeu o silêncio. Após inúmeras agressões físicas, psicológicas e humilhações, a acreana que se mudou para Natal após se aposentar como relações públicas decidiu denunciar o ciclo de violência ao qual foi submetida por muito tempo. Ela registrou boletins de ocorrência em dois estados brasileiros, expondo um histórico de abusos que ultrapassaram as barreiras do medo, do silêncio e da omissão.

O primeiro registro foi feito em Santa Catarina, no dia 10 de janeiro de 2023, na Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Joinville. Segundo o boletim, a vítima foi agredida com tapas no braço e na cabeça após o agressor ingerir bebida alcoólica. Além disso, teve o celular tomado e foi impedida de deixar o local.

https://www.originaltatamis.com.br/

O segundo boletim foi registrado em 30 de dezembro de 2024, na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Natal. Desta vez, a denúncia se baseia no artigo 147-A do Código Penal, que trata do crime de perseguição, associado à violência doméstica motivada por gênero.

Em depoimento enviado à reportagem, Labina foi categórica:

“Fui vítima de agressão física e verbal, tortura física e psicológica praticadas por um professor de judô com idade avançada aqui em Natal. Faço esse desabafo com o objetivo de evitar que outras mulheres sejam vítimas da mesma mente doentia que me destruiu por dentro durante anos.”

Por um judô coerente com seus princípios

Jigoro Kano não criou o judô apenas como um esporte — mas como um método educacional baseado em valores universais de aperfeiçoamento contínuo e contribuição mútua. As situações narradas aqui não são casos isolados. São sintomas de uma doença ética que, embora afete uma parcela minoritária do judô nacional, exige reação firme e urgente. Se a comunidade judoísta não se posicionar contra esses maus elementos, o silêncio será cúmplice da destruição de tudo aquilo que o judô representa.

Labina com judocas da seleção brasileira paralímpica © Arquivo

Esta reportagem não é um ataque gratuito. É uma defesa — da vítima, do verdadeiro judô, dos professores íntegros e de cada criança ou mulher que precisam sentir-se seguras para pisar em um dojô.

Porque onde há violência, não há budô. E onde a impunidade é tolerada, o judô legítimo não pode florescer.

Posicionamento da FEJRN

A Federação de Judô do Rio Grande do Norte (FEJRN) foi formalmente procurada pela equipe da Revista Budô no dia 18 de maio de 2025, por meio de ofício. Nesta segunda-feira (19), o jurista Adriano Moralles Nobre, assessor jurídico da entidade, explicou que a FEJRN é a instituição desportiva responsável pela chancela da modalidade judô no Estado do Rio Grande do Norte, e que não há uma obrigação legal expressa que imponha às entidades esportivas o dever de manter cadastro específico sobre possíveis atos ilícitos cometidos por seus membros fora do esporte.

Sobre nosso questionamento se existe, por parte da FEJRN, algum procedimento ético, administrativo ou investigativo em curso a respeito deste triste e lamentável episódio, o assessor jurídico relatou que a FEJRN, através de sua comissão permanente de ética e disciplina, constituída no atual mandato, aguarda o desfecho do processo criminal existente, onde será apurada de fato a conduta do agente, oportunizando-lhe o contraditório e a ampla defesa, princípios constitucionais garantidos ao mesmo, para que possa se posicionar a respeito de uma medida.

Sobre o posicionamento institucional da FEJRN diante de casos de violência de gênero envolvendo profissionais vinculados à entidade, Adriano Nobre foi enfático:

“A Federação de Judô do Estado do Rio Grande do Norte manifesta seu mais veemente repúdio a todos os atos de violência de gênero, que atentam contra a dignidade, a integridade e os direitos fundamentais das pessoas. Reafirmamos nosso compromisso com a promoção do respeito, da igualdade e da justiça dentro e fora dos tatamis, repudiando qualquer forma de agressão, discriminação ou abuso. Nosso esporte, fundamentado nos princípios do respeito mútuo e da disciplina, deve ser um instrumento de transformação social, fortalecendo valores que condenam veementemente a violência em todas as suas formas. A Federação está empenhada em apoiar ações educativas e preventivas, colaborando para a construção de uma sociedade mais justa, segura e igualitária para todos, sendo estes pilares incluídos em nossos eventos de formação e nos mais diversos congressos que realizamos no decorrer do ano, com a presença de psicólogos, advogados, pedagogos que agem de maneira interdisciplinar, buscando a evolução do esporte nos mais diversos contextos de respeito à diversidade de gênero, religião e cultura.”

Boletim de ocorrência lavrado pela delegacia especializada de atendimento a mulher de Natal © Arquivo

Boletim de ocorrência lavrado pela Secretaria de Estado de Segurança Pública de Santa Catarina © Arquivo

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