22 de dezembro de 2024
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Morte de garoto de 7 anos após ser derrubado 27 vezes numa aula de judô não pode ser ignorada. Três estudos científicos baseados em lesões no esporte sustentam este artigo
Por Prof. Dr. Alexandre Janota Drigo
31 de julho de 2021 / Curitiba (PR)
A trágica morte de um garoto que praticava judô, após 27 quedas, e a responsabilização criminal do instrutor têm de levar-nos à reflexão, para que isto não mais ocorra. Não se trata de discutir a validade do judô enquanto proposta pedagógica e esportiva para crianças, pois isto é um fato. Entretanto, deve-se refletir sobre a melhoria da prestação de serviços à comunidade, pois isso não pode repetir-se!
Para discutir o assunto, primeiramente é necessário discorrer um pouco sobre anatomia e fisiologia, sobre algumas reflexões e adaptações a que o judô tem-se proposto em países que já se prepararam para abordar o assunto e, finalmente, apresentar três artigos sobre lesões fatais na modalidade para auxiliar na tomada de decisões na forma de recomendações.
É preciso entender que existem algumas lacunas que devem ser preenchidas com conhecimento. Uma delas é a relação entre quedas e ukemis. É inegável que o sistema de amortecimento e rolamentos nas modalidades de luta com quedas usam técnicas importantes para proteção dos praticantes, mas precisamos contextualizar algumas questões pertinentes a anatomia e fisiologia humanas.
Diferentes dos ossos e músculos, que são um conjunto unificado e estruturado, formando cadeias e articulações ligadas entre si, os órgãos internos são inseridos numa cavidade abdominal. E no caso do sistema nervoso central – cérebro, cerebelo e bulbo e medula espinhal – é importante entender, principalmente para este texto, que ele flutua num meio líquido dentro da caixa craniana e apenas a medula passa pelo forame de cada vértebra que forma a nossa coluna. Portanto, a proteção mecânica sobre o corpo proporcionada pelas técnicas de ukemis tem mais eficiência na estrutura osteomuscular do que nas partes internas.
Problemático nesta questão é que, apesar de a técnica de queda ser bem executada, pode ter o efeito de cessar o movimento de forma abrupta, dependendo de como é o impacto com o chão. Isso ocorre devido à relação entre a velocidade em que o corpo é projetado e a interrupção brusca do movimento ao se chocar com o solo. Nessa situação, a parte do SNC suspensa no líquido craniano pode não se desacelerar, acabando por chocar-se e comprimir-se contra a parede do crânio. Pode, ainda, voltar a se chocar com a parede oposta por reação ao primeiro choque, provocando um sistema de reverberação até que a velocidade provocada pela queda se dissipe.
É extremamente importante entender este fato, para que não existam exageros e abusos em relação às quedas nos esportes de combate. O Japão passou por este problema, o que motivou discussões sobre os caminhos do judô para crianças, com possíveis limitações de idade e local de prática, incluindo sua retirada do sistema educacional. As modificações feitas pelo país para amenizar, ou até mesmo resolver, estes problemas foram:
- Primeiro, eles enfrentaram o problema, não o desprezam nem deixaram para depois, promovendo estudos científicos de diagnóstico, problematização e formas de resolução do tema. (Como exemplificado em dois dos três artigos que serão apresentados adiante, oriundos de estudos japoneses).
- Melhora da qualidade tecnológica, refletida no mais eficiente amortecimento dos dojôs e dos tatamis, seja de escolas seja competições. O sistema de amortecimento dos tatamis proporciona redução da velocidade do corpo na queda, evitando a parada brusca. Com isto o efeito descrito anteriormente será minimizado.
- Mudanças na concepção pedagógica do ensino de judô, com ênfase na proteção e no cuidado com as crianças, verificando desde golpes a estratégias de ensino que evitem risco.
- Mudanças na formação de professores, técnicos e ou instrutores, por meio de cursos de enfoque pedagógico, apostilas e manuais, além de campanhas de proteção e segurança durante os treinos.
- Cobrança aos profissionais que trabalham com crianças acerca da segurança em relação ao treino.
Assim o Japão criou uma forma de manter o judô em todos os ambientes educacionais e reduziu os problemas que levaram a esta discussão.
Outro exemplo vem da Franca, onde os espaços possuem dojôs e tatamis adequados e o rigor é maior que o adotado pelo Japão. As técnicas das lutas de tachi-waza (de arremesso ou das lutas em pé) são treinadas por crianças, porém, até o ensino médio, por volta dos 14 anos, é proibida a luta em pé; admite-se apenas combate no solo.
Estas são as formas adotadas pelos dois países para melhorar a segurança em seus treinamentos e competições. As primeiras recomendações que se podem extrair desta parte do texto e aplicadas em nossa realidade são:
- Melhorar a capacidade de amortecimento de quedas dos dojôs/tatamis ou providenciar acolchoados adicionais em treinos específicos que requerem muitas quedas consecutivas, como no nage-ai (joga-joga).
- Estimular, no treinamento de ukemis (quedas e rolamentos), movimentos contínuos, de forma que não haja interrupções bruscas, permitindo que o próprio movimento continuado auxilie na redução da velocidade que atua sobre o SNC.
- Manter os profissionais sempre informados em relação a novos conhecimentos e tecnologias para seu trabalho e/ou ao aperfeiçoamento do dojô/academia.
- Acompanhar as outras recomendações deste texto que serão apresentados adiante.
A seguir, serão apresentados estudos sobre lesões fatais no judô, com a intenção de aprimorar o conhecimento sobre o assunto e permitir novas recomendações para a prática segura dentro do dojô.
1º. Artigo: Koiwai, E.K. Fatalities Associated With Judo. The Physician and Sportsmedicine. Volume 9, 1981 – Issue 4 Pages 61-66
Neste antigo artigo, de 1981, sobre acidentes associados ao judô, há relatos de 19 casos fatais: cinco causados por lesão cerebral, quatro por fraturas cervicais, cinco por problemas cardíacos e cinco por outras causas.
Neste sentido, o autor atribui ao judô a culpa por dez das 19 mortes. Ele apresenta a seguinte recomendação, que acompanhamos:
- A aplicação estrita de regras e precauções de segurança pode evitar lesões mais graves.
Pode-se observar que o texto é simples, coloca os problemas cardíacos e outros como imprevisíveis e relaciona dez mortes diretamente à prática de judô. Evidencia que, se os indivíduos não estivessem praticado naquele momento, não sofreriam os acidentes fatais. Por isso a recomendação é imprescindível para promover segurança.
2º Artigo: Takeshi Kamitani, Yuji Nimura, Shinji Nagahiro. Catastrophic Head and Neck Injuries in Judo Players in Japan from 2003 to 2010, The American Journal of Sports Medicine, Volume: 41 issue: 8, page(s): 1915-1921.First Published June 13, 2013 Research Article Find in PubMed.
O artigo dos autores japoneses foi publicado na renomada revista americana de esporte e medicina e seu título pode ser traduzido em português por Lesões catastróficas de cabeça e pescoço em lutadores de judô no Japão de 2003 a 2010. Ele relata inicialmente que “poucos estudos documentaram lesões catastróficas de cabeça e pescoço no judô, mas essas lesões merecem maior atenção”.
O trabalho teve como objetivo “determinar as características das lesões catastróficas de cabeça e pescoço no judô” por meio de um estudo epidemiológico descritivo, ou seja, avaliando o número e a incidência de casos e descrevendo-os.
O dados foram obtidos dos relatórios de acidentes enviados ao Sistema de Compensação por Perdas ou Danos da All Japan Judo Federation. Foram relatadas 72 lesões (30 na cabeça, 19 no pescoço e 23 outras) entre 2003 e 2010. Os parâmetros selecionados foram mecanismo da lesão, idade no momento da lesão, tempo de experiência no judô, diagnóstico e resultado.
Entre as lesões na cabeça, 27 de 30 ocorreram em judocas com menos de 20 anos de idade ao serem arremessados. Em consequência dessas lesões, 15 morreram; cinco ficaram em estado vegetativo persistente; seis necessitam de assistência devido a disfunção cerebral elevada, hemiplegia ou afasia; e quatro tiveram recuperação total.
Tristemente o estudo associa as lesões na cabeça a idade inferior a 20 anos e aos arremessos.
Pode-se observar que este artigo contém outras constatações interessantes; recomenda-se a leitura. Mas ele reforça que a incidência de lesões na cabeça predomina entre os mais jovens e durante as quedas em virtude dos arremessos.
Estas informações se completam com o último artigo selecionado, considerado o mais interessante devido ao conteúdo e por apresentar novas recomendações em âmbito internacional.
3º Artigo: Carly Scramstad; Michael J. Ellis; Marc R. Del Bigio Community Health Consequences of a Second-Impact Syndrome Death Following Concussion, Published online by Cambridge University Press: 07 November 2016.
O artigo identifica a teoria da síndrome do segundo impacto (SSI) como uma “condição rara que ocorre quando uma pessoa sofre um segundo traumatismo cranioencefálico antes que os primeiros sintomas tenham desaparecido e desenvolve edema cerebral”. O trabalho descreve o caso de uma vítima de possível SSI e o subsequente inquérito medicolegista na província de Manitoba, Canadá.
O relato consiste no inquérito de um judoca de 16 anos que bateu com a cabeça enquanto lutava. Ele se queixou de tontura, mas não recebeu avaliação médica. No dia seguinte houve reincidência do trauma. Após o segundo evento, ele se queixou de dor de cabeça e perda de consciência e foi levado para um centro de atendimento. A tomografia a que foi submetido mostrou edema cerebral no lado direito. Acabou falecendo cinco dias após a internação. A autópsia revelou um cérebro inchado e outras complicações, como hematomas e hérnias cerebrais, mas sem diagnóstico de contusões cranianas. Chamou atenção o tamanho do edema cerebral, maior do que seria esperado, com lesão de neurônios e axônios.
A morte ocorreu em agosto de 1997, e um relatório do inquérito judicial foi emitido em janeiro de 2000. As recomendações feitas após o término da demanda estão apresentadas aqui com algumas adaptações para nossa realidade:
1) Avisos sobre riscos, explicando o que são traumas cranianos no judô, devem ser dados aos treinadores e dirigentes de clubes e responsáveis por eventos;
2) Fazer registros de saúde para o esporte, contendo uma seção de lesão na cabeça;
3) As organizações de esportes devem permitir que os árbitros emitam suspensões se houver suspeita de concussão;
4) Os técnicos devem encorajar os jovens atletas a verbalizar as lesões que possam ter sofrido
5) Campanhas implacáveis e conscientização pública são necessárias.
O juiz do inquérito escreveu:
“O que saiu alto e bom som deste inquérito é que o fator mais importante na prevenção de um resultado sério de um traumatismo cranioencefálico relacionado a esportes é garantir uma quantidade adequada de tempo de recuperação antes de permitir que um atleta volte ao esporte.”
Este texto apresenta dicas muito precisas sobre os cuidados para evitar riscos e propõe uma conduta adequada para segurança das crianças e jovens que praticam judô. Diante de todo o exposto, reitero as recomendações anteriores e somo as que se seguem para conclusão do estudo:
- Reforçar a necessidade de os senseis permitirem e estimularem crianças e jovens a expressarem seus desconfortos e de evitarem forçar a continuidade da sessão de treino após uma queixa.
- Ao sofrer uma queda de cabeça ou com torção de pescoço, a criança (ou o jovem atleta) deverá ser encaminhada a um exame médico e ao tratamento, se necessário.
- Observar atentamente os treinamentos e sintomas decorrentes de quedas bruscas e com forte impacto, principalmente se o local de treino tiver o dojô ou tatamis com pouco amortecimento. Desta forma, se o aluno/atleta demonstrar comportamento de desconforto – como ficar momentaneamente atordoado, chacoalhar a cabeça para se focar, bater no rosto ou usar outro meio para “acordar”, visão alterada, levantar com ligeira confusão, desequilíbrio e outros indiquem que a queda pode tê-lo afetado –, o responsável deverá:
a) Interromper a luta e deixar quem levou a queda ao menos 20 minutos em observação; na ocorrência de qualquer sinal de sonolência, dor de cabeça, enjoo, tremores ou a persistência desses fatores, o praticante deverá ser encaminhado para atendimento médico.
b) Anotar o ocorrido em registro próprio de saúde de seus atletas/alunos.
c) Avaliar, antes do treino seguinte, o estado do indivíduo e verificar se teve dores de cabeça, dormiu e se alimentou normalmente e quaisquer transtorno ocorrido no período em que não treinou. No caso de jovens atletas, se considerar que está tudo bem, poderá seguir com normalidade; em caso de crianças, recomenda-se evitar quedas na semana. Se houver quaisquer alterações persistentes, como dores de cabeça ou outra relatada, encaminhar o judoca ao médico antes de liberar o retorno ao treinamento.
d) Manter-se atualizado e observar recomendações que poderão ser indicadas por novos estudos e conhecimentos sobre o tema.
Finalmente, consideramos que estes estudos se tornaram complementares em relação ao diagnóstico e às possíveis decisões a serem recomendadas. Estas atitudes melhoram definitivamente a condição da prestação de serviços e a confiança da sociedade perante os trabalhos relacionados ao judô. Considera-se também que de forma nenhuma deprecia o esporte e os praticantes, ao contrário, os países que se preocupara com os problemas aqui mencionados (Japão, França e Canadá) não tiveram nenhum prejuízo por assumir uma posição frente a estas fatalidades.
Desta forma, esperamos estar contribuindo para maior segurança das crianças e jovens e assim dizer que, de alguma forma, nosso judoca de 7 anos seja honrado por despertar em nós a vontade de sermos melhores, para que nunca mais este fato se repita.
É para ele e por ele que escrevi este texto.
Nota: Os artigos aqui citados estão inteiramente ou parcialmente disponibilizados de forma gratuita nos sites indicados e estão todos em língua inglesa.
Prof. Dr. Alexandre Janota Drigo
Profissional de Educação Física
Profissional Delegado CREF4/SP – 000839-G/SP