Shoshin (初心): a mente do principiante e a busca pela sabedoria no Budô

Shoshin é o estado mental do principiante, no qual cada movimento carrega humildade, atenção e aprendizado © Global Sports

Mais do que um conceito, Shoshin é um estado de espírito que convida à humildade, ao aprendizado contínuo e à consciência da impermanência — pilares que sustentam o verdadeiro caminho do Budô.

Por Fernando Malheiros Filho
Curitiba, 6 de junho de 2025

Em minhas reflexões sobre o Budô, tenho explorado os cinco estados mentais que considero essenciais para a prática: Shoshin (初心) – Mente de principiante; Zanshin (残心) – Mente alerta; Mushin (無心) – Mente sem mente; Fudoshin (不動心) – Mente inabalável; e Senshin (先進) – Mente que se antecipa.

A experiência me convenceu de que o desenvolvimento desses estados mentais é a maior dádiva que o Budô pode oferecer, especialmente quando o observamos com a perspectiva contemporânea, distanciando-nos da crueza de sua concepção original, que visava forjar guerreiros implacáveis diante da morte.

A consciência da finitude, inerente à condição humana, é o nosso maior desafio existencial. Estamos fadados a escrever uma história com um final já conhecido: a morte. No entanto, podemos transformar essa certeza em uma companheira constante, que nos conduz à sabedoria e ao aprendizado profundo sobre a vida.

Dentre os estados mentais mencionados, dedico-me aqui a explorar o Shoshin. É importante distingui-lo do nome do Rei de Okinawa, Shō Shin (尚真), que governou Ryukyu entre 1477 e 1526. Apesar da fonética similar, os significados são distintos.

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A expressão Shoshin (初心) possui uma rica etimologia. É formada por dois caracteres kanji: Sho (初), que significa “primeiro”, “início”, “começo” ou “original”; e Shin (心), que significa “coração”, “mente” ou “espírito”. A tradução literal de Shoshin seria “mente original” ou “coração do início”, expressando a ideia de uma mente livre de preconceitos, aberta a novas experiências, semelhante à mente de uma criança que descobre o mundo pela primeira vez. O kanji “shin” (心) também pode ser traduzido como “essência” ou “núcleo”, o que nos permite interpretar Shoshin como “essência original” ou “mente essencial”. Essa interpretação evoca a importância de nos conectarmos com nossa natureza primordial, livre de condicionamentos e expectativas.

Características e benefícios do Shoshin são inúmeros:

  • Abertura: a mente de principiante acolhe todas as possibilidades, sem se fixar em ideias preconcebidas ou expectativas limitantes.
  • Curiosidade: cultiva-se um senso de admiração e curiosidade constante, como se tudo fosse vivenciado pela primeira vez.
  • Simplicidade: a mente de principiante busca a essência das coisas, encontrando beleza na simplicidade e evitando complicações desnecessárias.
  • Presença: permite estar plenamente presente no momento, sem se distrair com o passado ou o futuro.
  • Não julgamento: observa-se o mundo sem julgamentos, rótulos ou categorizações, aceitando cada experiência com receptividade.

Shoshin impulsiona a:

  • Criatividade e inovação: novas ideias e soluções emergem naturalmente, pois a mente livre de padrões de pensamento ultrapassados encontra-se aberta à criatividade.
  • Aprendizado contínuo: a receptividade inerente ao Shoshin facilita a aquisição de novos conhecimentos e habilidades.
  • Redução do estresse: viver com leveza e serenidade torna-se possível, pois não há apego a preocupações e expectativas.
  • Aumento da apreciação: as pequenas coisas e os momentos simples da vida passam a ser valorizados com intensidade.
  • Melhora nos relacionamentos: desenvolve-se a empatia e a compreensão, evitando-se julgamentos baseados em experiências passadas.

Esse estado mental está intrinsecamente ligado à consciência da morte, mas não de forma mórbida. A morte serve como um farol que ilumina nossos valores, relativizando tudo aquilo que nos afasta da verdade essencial: a impermanência e a efemeridade da vida.

Os sentimentos que o medo da morte – mesmo inconsciente – gera, como a busca por poder, o hedonismo, a dissimulação, o egoísmo, a hipocrisia, a inveja, o menosprezo, a arrogância e a empáfia, são combatidos pela mente de principiante.

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Shoshin é o antídoto para essas imperfeições. Permite-nos reconhecer nossas falhas e compreender a essência dos outros sem julgamentos, aprendendo com cada interação.

O mundo e seus habitantes representam a infinitude para a mente humana. A compreensão total é inalcançável, mas a busca pelo conhecimento deve ser incessante. Somente uma mente livre de preconceitos – a mente do principiante – mantém acesa a chama do aprendizado contínuo.

Shoshin, em sua fluidez, permite que o aprendizado se estenda até o último instante da vida, quando aprendemos a morrer, o derradeiro ensinamento.

A prática do Budô contribui significativamente para esse processo. No Budô, todos se igualam em um caminho que nos coloca em contato com o que há de mais primitivo em nós, aproximando-nos da natureza e expondo-nos ao aprendizado constante, ao cansaço, à insegurança, ao medo e a todas as experiências que a vida oferece.

A mente livre de impurezas precisa ser cultivada diariamente. Somos iguais em nossa desigualdade, e o Shoshin nos permite reconhecer isso. Ele mantém abertos “os olhos da mente”, que se fecham quando somos dominados por sentimentos negativos.

No Budô, o praticante confronta continuamente sua própria ignorância, e a mente de principiante é sua aliada nessa jornada. Para o professor, o desafio é ainda maior: aprender com os erros de seus alunos, reconhecendo que cada um deles oferece valiosas lições. Para isso, o mestre precisa retornar constantemente ao princípio, à mente do principiante.