Uke, o destinatário

O tori Wagner Uchida e o uke Paulo Ferreira, bicampeões mundiais de kata © Budopress

É evidente que a possibilidade de ataque não é dada apenas ao tori ou ao uke, ambos podem dar origem a uma ação positiva e apropriada

Fundamentos Técnicos
27 de abril de 2021
Por MARCO ANTÔNIO DOMINGUES
Curitiba (PR)

O treinamento do judô começa com a prática combinada de educação física e arte marcial. Há duas formas de prática: kata e randori. Por kata entendem-se as formas estabelecidas e pré-determinadas da ordem dos movimentos para condicionamento do combate e defesa pessoal; randori é a prática livre de habilidades de combate exercitada com respeito ao oponente e com cuidado à sua segurança física (Pavani, 2020).

Segundo o Instituto Kodokan de Tóquio, as principais formas de praticar judô são o randori, na qual os praticantes aplicam livremente as técnicas, atacando e defendendo simultaneamente, e os katas, quando aprendem e exercitam os princípios e fundamentos das técnicas (Lex, 2017).

Posto isto, entendo que tanto na atuação livre de aplicação das técnicas, (randori) quanto na prática das formas estabelecidas e pré-determinadas da ordem dos movimentos para condicionamento do combate e defesa pessoal (kata) a participação do uke é de indiscutível importância.

Por vários aspectos, o uke é um ideograma que detém a nossa atenção

Daí a melhor literatura (oriental e ocidental) revela que o ideograma do uke foi construído ao longo do tempo com farta riqueza de detalhes, portanto, o mesmo é digno de ser estudado amiúde e compreendido de maneira ímpar; senão, vejamos.

Ele comporta duas direções (flechas). Uma estendendo-se para baixo e outra, para cima. Ao centro temos a figura que representa um barco.

As flechas para baixo e para cima revelam a transmissão de mercadorias de uma pessoa para a outra em tempo pretérito, assim, ele se tornou ao longo do tempo o kanji utilizado para indicar o ato de receber, perfazendo por consequência o destinatário.

Como é óbvio, no judô temos o tori e o uke, que numa tradução livre deve ser entendido como destinatário. Por sua vez, no karatê, o ukete é a mão que recebe, enquanto no kendô o ukedachi é a espada que recebe. Portanto, no judô, no karatê e no kendô uke é sinônimo de destinatário, figura imprescindível no combate.

Não obstante, nas academias, de maneira geral, uke é traduzido incorretamente como quem se submete à técnica, dando a entender a ideia de um perdedor. Entender que a palavra uke significa mais corretamente receber (destinatário) abre novas frentes ao praticante de toda e qualquer arte marcial, entre elas o judô, o karatê e kendô.

Note que agir como uke em um randori é muito mais do que restar passivo frente aos ataques do tori, pois se trata de uma opção em assumir a atitude de alguém que recebe a energia de uma técnica por sua conta e risco (por sua própria vontade). Logo, muito diferente da ideia de um perdedor, em que pese entendimento contrário firmando pela vox populi, pois ele, uke, absorve a energia da técnica (o que não implica necessariamente uma derrota) e de pronto fica em pé.

Os termos ukete (karatê) e ukedashi (kendô) estão sujeitos a interpretações discrepantes da realidade ora descrita, e, por engano, eu acredito veementemente que revelam o praticante apto a desviar de um ataque. Todavia, não é assim, uma vez que as ukekatas exigem que o praticante receba o ataque para enviá-lo em outra direção ou usá-lo contra o próprio atacante, ou seja, contra o tori.

Gabriel Bondezan, judoca da seleção paulista sub 18 fazendo randori no Japão © Budopress

Jigoro Kano sensei (1860-1938) esclarece isto afirmando: geralmente, supõe-se que o jiu-jitsu é uma arte de ataque e defesa com base na antiga teoria de que a suavidade controla a rigidez e que esse foi o único raciocínio usado nas lutas do jiu-jitsu. Se isto fosse verdade, implicaria que as técnicas de jiu-jitsu eram inúteis sem ter um oponente para atacar, e se fosse realmente assim, teria uma forma muito restrita de combate.

Para Jigoro Kano, um ataque e sua resposta defensiva adequada são forças instantâneas e ativas tanto para o tori quanto para o uke. Os papéis são trocados em todos os momentos, ou seja, um tori pode ser um uke e um uke pode ser um tori. Ao contrário deste entendimento, caso dois praticantes passivos se enfrentassem, cada qual à espera do ataque do outro, não haveria luta, pois nenhum deles atacaria.

O professor Kano diz que se trata de um fato, pois é evidente a possibilidade de ataque dada tanto ao tori quanto ao uke; assim, ambos podem dar origem a uma ação positiva de ataque apropriado.

Com o uke passivo, suas ações de ataque e defesa são inconsistentes e, além disso, impedem a formação de um padrão preciso de movimento repetitivo.

Kano sensei idealizou um uke normalmente ativo, fato que resta perfeitamente demonstrado pela execução de algumas técnicas do nage-no-kata. O papel do uke pode ser resumido da seguinte forma:

1º – Em todos os katas empurra ou puxa o tori para realizar um ataque ou com a intenção de realizá-lo;

2º – Realiza seus ataques empurrando, batendo ou colidindo com o tori;

3º – Em algumas ocasiões, ele lança o tori ou mostra a intenção de querer fazê-lo;

4º – Ele está sempre ativo, tori aproveita a força do uke cedendo ou resistindo, conforme apropriado.

5º – Desempenha o papel de agressor, pois sua ação é sempre realizada, ou com a intenção de realizá-la, empurrando ou puxando tori.

Para Jigoro Kano sensei, um ataque e sua resposta defensiva adequada são forças instantâneas e ativas tanto para o tori quanto para o uke.

As funções são sempre intercambiáveis:

1º – Um atacante (tori) pode ser um defensor (uke);

2º – Um defensor (uke) pode ser um atacante (tori).

Marco Antônio Domingues é graduado em direito, especialista e mestre em direito civil e especialista em improbidade administrativa. É policial militar rodoviário lotado na 3ª Companhia do 4º Batalhão de Polícia Rodoviária, Campinas (SP). Professor policial militar de técnicas de menor potencial ofensivo e defesa pessoal desde 1992. Orientador professor policial militar na Escola Superior de Sargentos da Polícia Militar do Estado de São Paulo desde 2.000.
Referências
BORBA, Francisco S. Dicionário Unesp do português contemporâneo. 1. ed. Curitiba: Piá, 2011.
BULL, Wagner. Kodokan judô. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 2008.
MIFUNE, Kyuzo. Judo – Principle and Technique. 1. ed. Tokyo: Publishing, 1956.
KANO, Jigoro. Kodokan Judo. 1. ed. Tokyo: Kodansha Internacional, 1986.
Jigoro. Energia mental e física. 1. ed. São Paulo: Pensamento, 2012.
LEX, Sérgio Barrocas. Judô: aprender e gostar é só começar. 1. ed. Santos: Bueno Editora, 2017.
PAVANI, Luiz. Judô Kyohon. Os ensinamentos fundamentais do judô. 1. ed. Santa Maria: Master Esportes, 2020.
VIRGÍLIO, Stanlei. A arte do judô. 3. ed. Porto Alegre: Rígel, 1994.
WATANABE, Kiichi. BORGES, Odair Antônio. Minidicionário de judô. 1. ed. São Paulo: Akobrace, 2013.