Denúncia de racismo tira brilho da competição de judô dos Jogos Abertos do Interior

Talita Libório Moraes, faixa-preta de São José dos Campos © Divulgação

Talita Libório Moraes, faixa-preta de São José dos Campos, fez grave denúncia de injúria racial contra outro judoca e promete levar o caso até as últimas consequências

Por Paulo Pinto / Global Sports
11 de outubro de 2022 / Curitiba (PR)

Muito já foi dito e discutido a respeito do importante papel do esporte no combate ao preconceito racial e há uma ideia consolidada de que todos são iguais no cenário esportivo. Mas, lamentavelmente, isso não impede o surgimento de atos isolados que nos lembram que a velha tragédia social ainda não está totalmente erradicada, seja em que estrato for da sociedade.

Para surpresa de todos que militam no judô, na 84ª edição dos Jogos Abertos do Interior, promovida pela Secretaria de Esporte e Lazer do Estado de São Paulo, houve uma denúncia de prática de racismo durante a competição de judô, uma modalidade fundamentada em conceitos filosóficos que visam ao desenvolvimento social e humano.

A professora e atleta Talita Libório Moraes, de 30 anos, fazia seu primeiro combate quando, segundo ela, começaram as ofensas. Mas ela só percebeu depois de terminada a luta, da qual saiu vencedora, quando ouviu repetidamente o grito: “Negrinha, você só ganha roubando”.

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Embora houvesse muita gente gritando em volta, Talita viu um atleta com expressão de ódio e dedo em riste apontado para ela. “Foi o que realmente me assustou muito. Nunca tinha passado por isso. Só fiz um sinal para ele calar a boca e fui cumprimentar minhas colegas de equipe, que ainda comemoravam a vitória.”  Logo depois, Talita subiu à arquibancada e se deparou com o técnico do seu agressor, desconhecendo que ele também era pai do faixa-preta que a teria atacado. “Sensei, isso não pode ficar assim, disse a ele. Mas ele apenas disse para eu fazer o que quisesse.”

Professora lotada nas secretarias municipais de Esporte e Educação de São José, Talita explicou que queriam chamar a polícia na hora, mas a competição ainda estava na segunda rodada e sugeriram que o fizesse somente após o término das lutas de sábado. E foi exatamente o que aconteceu. “E foi este o meu erro”, disse Talita. “Eu deveria ter chamado a polícia no exato momento da agressão, porque ele seria preso em flagrante. O que ele fez é crime inafiançável.”

Agravante

Encerrada a jornada, a atleta conta que ela e seu técnico estavam indo formalizar a denúncia quando atletas que estavam na arquibancada se aproximaram e fizeram outra grave acusação. “Talita, você não escutou? Por diversas vezes ele te chamou de macaquinha.”

Equipe de São José dos Campos faz sinal de protesto contra o racismo © Divulgação

Ainda segundo Talita, ao fazer o relato para o boletim de ocorrência ela disse que não havia escutado o xingamento, mas que um atleta de Franca que recebia atendimento médico no momento da luta, a procurou para confirmar que os gritos de “macaca e negrinha” foram repetidos várias vezes. Até a professora Rogéria Cozendey, de São Sebastião, teria confirmado a Talita que um aluno seu ouvira os ataques. Rogéria, porém, afirmou a nossa reportagem não ter escutado absolutamente nada e que apenas ouvira a denúncia de um ex-aluno.

Após as lutas, Talita fez o boletim de ocorrência e voltou para Caraguatatuba, onde mora. Enquanto isso, os dirigentes da sua equipe fizeram um pedido de vistas ao comitê organizador dos jogos, às 20 horas do sábado. Com isso ela entendeu que no dia seguinte alguém tomaria alguma providência. Mas avisou seu sensei que, se não ocorresse nada na manhã seguinte, pararia a competição. E foi o que aconteceu.

Talita reafirmou que jamais se sentira tão mal e tão injustiçada na vida. “Quando passou a raiva, eu fiquei sem chão e sem compreender de onde o agressor havia extraído tanta ira para me atacar de forma tão covarde. Eu nunca havia visto esse menino, e muito menos seu pai, que é professor de judô em Sorocaba. Chegando em casa comecei a chorar e não consegui dormir um minuto, tamanha era a minha revolta e indignação. Toda vez que fechava os olhos via o dedo daquele moleque apontado para mim e a imagem dele gritando de forma agressiva.”

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Na manhã de domingo, sem nenhuma resposta da Secretaria de Esporte e Lazer do Estado de São Paulo, Talita subiu aos tatamis e disse que não sairia de lá até que alguma coisa fosse feita. O coordenador técnico do evento convenceu a judoca a se retirar e a continuar a batalhar pelos seus diretos em local e momento mais adequados. Assim, a competição prosseguiu, mas com atraso de duas horas, o que causou muita indignação e revolta por parte das equipes que vinham das cidades mais distantes.

A reportagem apurou que Renan Augusto Furtado Rossi, suposto agressor de Talita, também fez um boletim de ocorrência – mas contra ela, por calúnia e difamação, sugerindo que tudo não passou de invenção.

Após os desdobramentos de domingo pela manhã, Talita desistiu de lutar no individual, mas para ajudar a sua equipe a conquistar medalha, disputou o absoluto e foi campeã vencendo as cinco lutas por ippon. “Quero agradecer a todos que ficaram comigo e me apoiaram durante este dia, que nos mostram nitidamente que o judô vai muito além do ganhar ou perder: é uma filosofia de vida. Apesar dos pesares, estou recebendo muito carinho e cuidado”, desabafou a atleta.

São José, o campeão

A 84ª edição dos Jogos Abertos do Interior Horácio Baby Barione ocorre desde o dia 3 e vai até 15 deste mês, em São Sebastião, no Litoral Norte. A disputa de judô abrange as classes individual, por equipe e absoluto e teve como campeã a equipe da Secretaria de Esportes de São José dos Campos, com 71 pontos.

Cópia do ofício da coordenadoria de Esporte e Lazer do Estado de São Paulo

Com 57 pontos, a equipe da Secretaria de Esporte de São Caetano do Sul ficou em segundo lugar, seguida por São José do Rio Preto, que totalizou 55,5 pontos. Na quarta colocação veio a equipe de judô de Botucatu, com 47,5 pontos, e na quinta a equipe da Secretaria de Esportes de Santo André, que obteve 42 pontos.

Coordenadoria se manifesta

Por meio do Processo Disciplinar № 006/2022 firmado por Solange Guerra Bueno, auditora presidente da CDEJD, a coordenadoria de Esporte e Lazer do Estado de São Paulo informa que se viu impedida a determinar a culpa do suposto agressor devido à intempestividade do pedido e à falta de provas.

Boletim de ocorrência feito por Talita Libório

Trata-se de representação do município de São José dos Campos, onde consta que o judoca Renan Augusto Furtado Rossi, da equipe de Sorocaba (SP), participante do 84º Jogos Abertos do Interior “Horácio Baby Barioni”, no dia 8 de outubro injuriou a atleta Talita Libório de Moraes, judoca de São José dos Campos no recinto das competições.

“Não há na representação do município de São José dos Campos (SP) elementos que forneçam subsídio suficiente para o deferimento da mesma, uma vez que, além de intempestiva, esta corte se extinguirá antes do fim do processo judicial”, conclui o ofício.

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