A arte marcial, o Ocidente, professores e alunos

Contamos em várias as gerações de professores e praticantes no Brasil © Belchonock / Depositphotos

Aqueles que decidiram ministrar aulas têm em suas mãos a alma dos que aprendem. A responsabilidade é enorme, e devem dar conta de estar à altura do nobre desafio.

Por Fernando Malheiros Filho
5 de julho de 2024 / Curitiba (PR)

O fenômeno das artes marciais, em qualquer quadrante, não é mais novidade que possa despertar mera curiosidade. Já se venceram gerações desde que os primeiros imigrantes orientais o trouxeram em sua bagarem cultural, com a prática e seus valores.

Contamos em várias as gerações, no Brasil, as que experimentaram o contato com essa peculiar construção de valores morais, espirituais e de técnicas aperfeiçoadas por milênios em seu desenvolvimento.

Por aqui, provavelmente a imigração japonesa, no início do século XX, trouxe os primeiros praticantes das modalidades. Mas, como sabemos, não desembarcaram no País com o propósito de difundi-las: vieram como agricultores, ou alguns outros profissionais, em busca de melhores condições de vida, prometidas na América Latina.

Depois da 2ª Guerra Mundial, esse intercâmbio ficou mais frequente. Alguns vieram já com formação concluída em suas escolas no Oriente, até com o propósito de difusão de seus conhecimentos, abertura de locais para treinamento, para ministrar aulas, enfim, incluir na cultura e nos modos do país receptor o apreço às artes de luta.

Por décadas, as modalidades desenvolveram-se isoladas, cada uma com suas características, entre aquelas que tinham técnicas de golpes percussivos e lesivos, e aquelas em que predominavam as projeções e as técnicas no chão.

Nova revolução ocorreu com o surgimento dos vídeos, inicialmente pelo vetusto sistema de fitas magnéticas, mas que permitiam levar a experiência aos rincões em que não chegaria de outra forma. Os simpósios multiplicaram-se e, finalmente, tivemos o surgimento das possibilidades das redes sociais. O conhecimento estava ― e está ― ao alcance de quem tivesse paciência para decifrá-lo.

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Em paralelo, além do ambiente competitivo do desporto, surgiram, e proliferaram, as ferozes competições de artes marciais mistas (MMA), com a inicial tentativa de medir o sucesso ou eficácia de cada uma delas, logo depois superada pela consciência de que deveria o competidor dispor de amplo leque de técnicas, sob pena de ser batido com facilidade por aqueles que as dominavam.

O que houve não foi a superação de umas pelas outras, mas a convivência. Vários competidores, de numerosas modalidades, impuseram-se nessas disputas, mostrando que vale o empenho pessoal, a dedicação ao treinamento e mesmo a compleição física e a genética: a velha e conhecida meritocracia.

Todas as artes sobreviveram a essa espécie de sístoles e diástoles do processo cultural em que se acharam envolvidas. E seguem existindo. Vemos quantidade inumerável de professores empenhados em transmiti-las aos seus alunos, tal como ocorria com os antigos mestres em Okinawa, no Japão, na China e onde mais velhos professores dedicaram-se à formação de seus discípulos.

“É nessa brecha que parecem insinuar-se as artes marciais em qualquer parte do mundo: na profundidade espiritual de cada ser, na expressão de sua identidade através dos movimentos e na compreensão que podemos retirar disso tudo.”

O que efetivamente interessa é a origem e o desenvolvimento desse processo. Todos, ainda que intuitivamente, sabem que a disciplina das artes marciais é utilíssima para o desenvolvimento de crianças e adultos; tem influência no sistema psicomotor e na formação pessoal do praticante. Transcende o simples aprendizado de técnicas.

Aqui nós voltamos para o que é essencial: essa prática ajuda a enfrentar as principais dúvidas filosóficas do ser humano, sua integração com o meio, o desenvolvimento saudável, dando mais um sentido à existência, ou quem sabe o único, caso a vida não fizesse sentido.

Principalmente, estou certo, a prática desvenda ao praticante algo que ele provavelmente desconhecia: ele próprio!

E isso não é pouco. Em tempos de tormentos existenciais ― como quase sempre estamos ―, dar sentido ou propósito significa amenizar as dúvidas que nos desassossegam, tornando-nos mais altivos, produtivos, adequados e estáveis.

Não falo em felicidade ― esse estado de ânimo inatingível, salvo em passageiros átimos no curso da existência de cada um. Digo que encontrar um caminho, e trilhá-lo com determinação, sempre foi, ao ser humano, o melhor antídoto para suas angústias.

É nessa brecha que parecem insinuar-se as artes marciais em qualquer parte do mundo: na profundidade espiritual de cada ser, na expressão de sua identidade através dos movimentos e na compreensão que podemos retirar disso tudo.

Fica a advertência àqueles que decidiram ministrar aulas aos sequiosos alunos de cada modalidade: têm em suas mãos a alma dos que aprendem. A responsabilidade é enorme, e devem dar conta de estar à altura do nobre desafio. Tratem de estudar!