Georges Mehdi e Rudolf Hermanny, uma história que transcende o tempo e os tatamis

Georges Mehdi e Rudolf Hermanny caminham nas ruas de Ipanema

Nascidos nas décadas de 1920 e 1930, os professores kodanshas radicados no Rio de Janeiro são uns dos maiores judocas do Brasil

Bushidô
11/07/2018
Por PAULO PINTO I Fotos EDUARDO PIRES e ARQUIVO
Curitiba – PR

Observando a foto onde os professores Georges Kastridget Mehdi e Rudolf Hermanny aparecem caminhando lado a lado, o professor kodansha (7º dan) Oswaldo Cupertino Simões Filho escreveu o texto transcrito abaixo.

Usando toda a sensibilidade que lhe é peculiar, o sensei baiano radicado no Rio de Janeiro descreve subliminarmente ensinamentos e marcas indeléveis que o judô imprimi naqueles que se tornam verdadeiramente judocas ao adotarem os ensinamentos deixados por Jigoro Kano como princípios de vida.

Georges Mehdi com judocas do alto rendimento do Japão

Esse é o judô

Senseis Rudolf Hermanny e George Mehdi de mãos dadas passeando em Ipanema. Tanto se fala, mas pouco se sente.

Estes dois sentem e demonstram o que é o verdadeiro judô: união e companheirismo. Eles nos ensinam sempre. Na verdade, são grandes exemplos para todos nós.

As mãos não são apenas para fazer um bom kumi-kata e os braços não servem apenas para projetar um bom kuzushi, mas sim para apoiar um ao outro de forma irmanada no mais alto exemplo de ji-ta-kyo-ei (amizade e prosperidade mútua).

Linda foto para quem gosta de judô e para quem admira, gosta, preza e reverencia estes dois grandes senseis, assim como eu.

No final, o que importa é a amizade e o respeito que os dois edificaram e souberam manter por várias décadas. A juventude passa, os títulos, as medalhas e os cargos passam, mas a amizade e o respeito perpetuam. Esse é o judô de verdade.

No Japão, Mehdi treina com o amigo Isao Okano nas costas. Até hoje, na casa do Okano tem um quarto reservado para o amigo do Brasil

Reverenciando a origem

Mesmo tendo sido aluno dos senseis Kazuo Yoshida e Lhofei Shiozawa, quando ainda era jovem e morava na Bahia, Oswaldo Simões fez uma análise simples do lance capturado por Eduardo Pires, aluno do sensei Mehdi, quando os dois professores kodanshas iam tomar café, repetindo o trajeto que percorrem juntos e quase abraçados, diariamente, rumo a uma padaria de Ipanema.

Além de reverenciar os judocas veteranos, neste pequeno texto, Oswaldo Simões mostra o carinho e gratidão que sente por tudo que os professores octogenários produziram de bom para o judô do Brasil, seja conquistando medalhas, ensinado judô ou fazendo a transmissão do conhecimento que adquiriram com seus senseis, em meados do século passado.

Mehdi com os amigos Uichiro Umakakeba de Bastos (SP), Sadao Fleming Mulero de São Bernardo do Campo (SP) e Matsuo Hisa de Poços de Caldas (MG)

Treinar com o sensei Mehdi é como treinar com a própria sombra

Nascido em 21 de dezembro de 1927, na França, Georges Kastridget Mehdi costuma dizer que o judô é uma escola de disciplina e que o judô é superação da fadiga, da fome, da falta de velocidade e de si mesmo.

Frases como estas, repetidas incansavelmente para seus alunos, traduziram a essência e a preocupação do professor Mehdi em permanecer sempre fiel ao verdadeiro espírito do esporte criado por Jigoro Kano.

Mehdi com Matsumoto, seu sensei do Japão

Ao escrever a biografia deste mestre Budoka, o professor Stanlei Virgílio destacou que Mehdi sempre expressou que existe algo além da prática, como professor de judô mundialmente conhecido, este nosso mestre entende que é seu dever principal colaborar para formar verdadeiros homens, pessoas que procedam corretamente em seu cotidiano e que sejam reconhecidos como judocas onde quer que estejam, significando isso o uso da gentileza, do respeito para com os seus semelhantes, da honestidade e da integridade, ou seja, civilidade.

Rudolf Hermanny e Georges Mehdi com Massayoshi Kawakami e Goro Saito

Coerente com a sua busca de ensinamentos para aplicá-los em sua própria vida e no ensino de seus alunos, sensei Mehdi passou vários anos no Japão aperfeiçoando-se com o lendário professor Matsumoto, trazendo uma bagagem riquíssima de conhecimento que adaptou ao seu estilo pessoal, a ponto de receber exclamações como a do professor Takemori, vice-presidente da Confederação Americana de Judô: “em meus sessenta anos de judô, nunca aprendi tanto quanto em um seminário com o sensei Mehdi em Boston em 1960”. O professor Matsumora do New York Athletic Clube e da YMCA, quando esteve treinando no Rio de Janeiro, declarou várias vezes: “treinar com o sensei Mehdi é como treinar com a própria sombra”.

Discípulo dos mestres Ryuzo Ogawa e Augusto Cordeiro

Nascido em 16 de agosto de 1931, em São Paulo (SP), ainda jovem Rudolf Hermanny migrou com sua família para o Estado da Guanabara, que hoje é o Rio de Janeiro.

Outro flagrante de Mehdi no Japão

Segundo o historiador Stanlei Virgílio, o professor Hermanny iniciou seu judô com o professor Augusto Cordeiro em 1952, a quem esteve ligado até sua morte em 1987. Cordeiro foi o grande batalhador na preparação, organização e solidificação da Federação Guanabarina de Judô e Confederação Brasileira de Judô, e Hermanny, como seu aluno, teve participação decisiva na consolidação das duas entidades.

Augusto Cordeiro pertencia à Budokan, até hoje considerada a maior escola de judô do Brasil com filiais em muitos Estados. Era, portanto, discípulo direto do mestre japonês Ryuzo Ogawa. Das suas recordações, Hermanny fala sobre a impressão que causou a primeira competição do Instituto Budokan de São Paulo, na qual esteve presente.

“Estávamos no ginásio do Pacaembu, em São Paulo, quando ainda iniciava meus conhecimentos sobre o judô. Como os espectadores eram na proporção de 95% japoneses, o ambiente era nitidamente oriental. Respirava-se o modismo e as tradições japonesas, e não havia o costumeiro barulho das torcidas em dias de jogos, não havia conversas em tom mais alto, ninguém gritava ou se exaltava e os cumprimentos eram cerimoniosos. Havia respeito. Respeito entre todos. Entre atletas, árbitros, plateia e dirigentes”, explicou Hermanny.

Em seiza, Mehdi diante de vários professores japoneses

Outro fato marcante e muito significativo para o professor Rudolf Hermanny são os treinos que efetuou no hombu dojô da Budokan, do professor Ryuzo Ogawa em São Paulo, onde, além dos conhecimentos adquiridos, do aprimoramento técnico, teve ainda o privilégio e a felicidade de participar de um ensino diferenciado, em um ambiente pequeno, mas onde se faziam presentes o companheirismo, a humildade, a dedicação e outras tantas qualidades exigidas com rigor pelo mestre Ogawa.

“São lembranças que não esqueço e não quero esquecer, pois hoje, para nós, é diferente, são estranhas as coisas antigas. Foi uma experiência muito válida para quem só podia permanecer lá por dois ou três dias no máximo”, lembrou Hermanny.

Em seiza, Oswaldo Cupertino Simões Filho (peso pesado) e Lhofei Shiozawa (peso médio), com o troféu de campeões brasileiros de 1972, ao lado do sensei Kazuo Yoshida

Parabenizamos a diretoria da Associação de Judô Veteranos do Estado do Rio de Janeiro que, neste fim de semana, realizará o seminário “Os Pioneiros”, no qual os senseis Georges Mehdi e Rudolf Hermanny serão palestrantes.

Além de unir judocas de várias gerações, esta iniciativa premiará grandes ícones do judô fluminense, resgatando o trabalho e a história protagonizada por alguns dos maiores judocas do Brasil e de todos os tempos.