Budô: as paredes do dojô

Dojô da GKR escola de karatê fundada por Robert Sullivan em Adelaide, no Sul da Austrália. Ele iniciou a prática em 1964 e depois de passar longo período treinando e ensinando no Japão e nos EUA fundou a GKR em 1984 e hoje possui cerca de 600 unidades em toda a Austrália © GKR

No curso da ação os praticantes reconhecerão o ambiente na sua superior dimensão espiritual. Ouvindo as paredes saberão o significado de iluminação e não encontrarão outra forma de sabê-lo

Por Fernando Malheiros Filho
19 de novembro de 2022 / Curitiba (PR)

Dentre os praticantes, pouquíssimos ignoram o significado dos dois ideogramas (道場) que formam a palavra transliterada dojô. Sabemos tratar-se do “local do caminho”, ou o “lugar do despertar”, ou “lugar onde se pratica a via”. Sabemos também que o “caminho” (Zen) tem por objetivo a “iluminação” ou, de forma mais descritiva, encontrar a verdade, principalmente a interior. Algo como o verdadeiro autoconhecimento. Esse é o desafio a que os seres humanos se propõem desde o alvorecer da inteligência.

Por isso, o dojô reveste-se dessa roupagem transcendente da condição de altar, proscênio no qual aqueles que o frequentam haverão de descobrir, paulatinamente, o sentido de todas as coisas e, antes de tudo, a verdade sobre si mesmos.

Tampouco poderia imaginar, prezado leitor, que sendo frequentador de um, falte-lhe a informação sobre suas características e mesmo a nomenclatura, com os seus peculiares significados. Desde o Kamidana (altar xintoísta em homenagem aos ancestrais, que deve ficar na parede frontal), o Kamiza ou Shinza (assento dos instrutores), Shomen (à frente do dojô, normalmente, sendo possível, apontado para o Norte), mais todos os demais elementos que compõem o dojô, dependendo do rigor com a tradição japonesa.

Dojô Kyto de São Paulo fundado em 1982 pelo sensei Sumio Tsujimoto hachi-dan (8º dan), onde são ensinadas as práticas de judô, aikidô, karatê e yoga © Budopress

O dojô reclama espaço amplo, arejado, com boa ventilação e, sendo possível, contato com a natureza exterior. Afinal é da natureza, mas da humana, que as atividades ali desenvolvidas irão se ocupar. O assoalho deverá ser apropriado à prática a ser ali transmitida e aprimorada: acolchoado se a arte marcial importar em quedas frequentes, ou de solo mais rígido para aquelas em que o equilíbrio e a precisão dos movimentos são a tônica.

Mas o que chama atenção é que, apesar da carga simbólica de todos os elementos próprios ao dojô, e dos adereços de origem japonesa que a maior parte deles exibe, não há preocupação objetiva com as paredes daquele local.

Quem já enfrentou muitos anos de prática, evoluiu da condição de aluno para professor, haverá de reconhecer que as paredes representam elemento relevante na construção do ambiente, quer por sua imposição física de limite espacial, quer pelas mensagens simbólicas que elas transmitem àqueles que lá se encontram em busca da suprema abstração, de perseguir e, talvez, encontrar a natureza mesma do ser humano que cada um de nós acaba por se constituir.

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Essa tarefa, de voltar-se para dentro de si mesmo em busca dos escaninhos da própria história e da personalidade, não é empresa fácil, demandando, para além a determinação, a orientação correta e a confiança entre os partícipes da longa jornada.

As paredes do dojô devem refletir essa austeridade no compromisso assumido por cada um dos praticantes de se dedicar a tão nobre tarefa, cujo objeto, em todos os tempos, por poucos foi alcançado. Esse verniz de sobriedade compõe a atmosfera necessária ao propósito final.

“No dojô emulamos o pertencimento à matilha. Toda matilha tem seu líder, e a sorte de todos dependerá de sua lucidez. E o líder não é nada sem seus liderados.”

Não que os praticantes devam manter-se sóbrios em todo o tempo em que estiverem nas dependências do dojô, mas é importante que, lá estando, sejam constantemente advertidos pelo ambiente sobre o propósito transcendente daquela convivência e ambiência.

As emoções humanas são bem-vindas no dojô. Devem vir à tona justamente para serem avaliadas e aperfeiçoado o comportamento de quem as demonstra. O hilário convive com a seriedade, e o indivíduo somente se conhece pela interação com os demais: saberão sobre o mundo a que pertencem e sua posição no conjunto.

Treinamento de kendô no Butokuden dojô de Kyoto, no Japão © Christian Kaden / japan-kyoto.de

No dojô emulamos o pertencimento à matilha. Toda matilha tem seu líder, e a sorte de todos dependerá de sua lucidez. E o líder, todos sabemos, não é nada sem seus liderados.

Como é possível escolher o dojô, a escolha deverá depender de suas paredes e do líder: o professor. Que sejam ásperas e austeras as paredes – como costuma ser a vida – e duro, mas lúcido, o professor.

Após a escolha, as paredes do dojô afirmar-se-ão, com o tempo, no indivíduo praticante dedicado ao treinamento. Ele não sairá ileso dos dizeres silenciosos do ambiente. Em sua alma impregnar-se-ão as experiências ali vivenciadas, como acréscimo ao cardápio de experiência existencial que, talvez e de outra forma, jamais poderia ser vivida.

Olhar as paredes, fazer a genuflexão para o nada, tornar-se-á a regra. Dia a dia, ao chegar, após se aprumar, o entrante, à porta da entrada, divisará as paredes e, com o olhar, saberá de seus dizeres. A contrição imantará as ações do praticante. Cumprimentará a si mesmo, dicotomizando-se entre o que entra e o que sairá cada dia diferente; entre o que foi, o que agora é, e o que será.

O novo espaço do Sant’Anna Dojô de Ribeirão Preto (SP), no qual são ensinados karatê Shotokan e judô é uma versão moderna de dojôs © Arquivo

É o dojô, e suas paredes, o local litúrgico para esse fim, e não o espaço a ser frequentado apenas pelos mais aptos. Cada professor, a cada momento, ao analisar o que as paredes querem dizer, haverá de ouvir que, daqueles que elas abrigam, os menos aptos retirarão os melhores ensinamentos, cabendo ao instrutor a nobilíssima tarefa de melhorá-los.

Todos, sem exceção, nas mudanças paulatinas ou abruptas que o destino nos reserva, quando praticantes curtidos pelo tempo, alimentam a lembrança das experiências iniciais no primeiro dojô, e as saboreiam. Essa reminiscência é tão importante quando a existência. Compõe sedimento essencial à identidade de cada um.

Tudo isso pertence ao microuniverso do dojô contido por suas paredes: aquelas que tantas vezes contemplamos, aquelas às quais, exaustos pela exigência na prática, rogamos o fim da dificuldade, mas também aquelas que, em seu silêncio aparentemente indiferente, avisam-nos de que se pretendemos, como elas, permanecer em pé, altivos e com dignidade, deveremos perseverar.

Dojô do Instituto Takemussu, centro de treinamento e divulgação do Aikidô de São Paulo criado em 1987, pelo shihan shichi-dan (7º dan) Wagner Bull, pioneiro da modalidade no Brasil. O Instituto Takemussu é uma escola reconhecida pelo Hombu Dojô da Aikikai Foundation de Tóquio, no Japão © Arquivo

As paredes do dojô, bem sabemos, não falam, pensam ou agem. Para o praticante, apenas delas se retira a representação simbólica. São o que são para cada um dos frequentadores do local que, no curso da prática, reconhecerão o ambiente na sua superior dimensão espiritual. Ouvindo as paredes saberão delas o significado de iluminação. E não encontrarão outra forma de sabê-lo.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.

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