Budô: Há cultura marcial?

A cultura revela-se no pequeno e no grande. Todos são influenciadores e influenciados pela mesma atmosfera que envolve o movimento e têm seu comportamento modulado por ela © Fotomontagem Global Sports

Há um ecossistema em torno das artes marciais. Nele convive uma gama infinita de agentes e praticantes. Dessa convivência surgem hábitos, formas de compreender a prática e o mundo a partir dela. 

Por Fernando Malheiros Filho
24 de agosto de 2023 / Curitiba (PR)

Em mais um brilhante artigo, o professor Fernando Malheiros Filho transcende o espaço e o tempo que nos separam do futuro fazendo uma importante análise da necessidade de registrar o que já foi feito e pensado. Contar o que aconteceu e produzir uma literatura própria em todas as áreas da atividade marcial. Tarefa que, segundo ele, requer o trabalho de gerações no escrutínio de verdades, não tão aparentes, capazes de fomentar os valores que devem ser internalizados nos praticantes e, antes, em seus professores e instrutores.

Há um ecossistema em torno das artes marciais. Nele convivem, e interagem, mestres e professores, alunos, praticantes em geral, os mais veteranos e os novatos. No campo das competições, aqueles que delas participam e os que se destacam, os árbitros, o inestimável pessoal de apoio. Administrativamente, há o gestor das federações, os diretores – estes não necessariamente praticantes, mas que guardam com o fenômeno alguma proximidade, por identidade ou admiração ou até mero oportunismo. Há os que veem tudo à distância, mas de alguma forma participam, nem que seja apenas eletronicamente.

Desde a antiguidade, no Ocidente e no Oriente, todo esse povo convive, e dessa convivência surgem hábitos, formas de compreender a prática e o mundo a partir dela; surgem procedimentos, formação moral e ética, até com relação às vestes, aos locais de prática (dojô), influências filosóficas e religiosas, e tudo mais.

Não é menos correto que todos os envolvidos no fenômeno das artes marciais preocupam-se principalmente com técnicas, posturas físicas, ações e competições, mas também é certo que não há movimento humano, assim conhecido como o grupo de seres unidos pelo mesmo propósito, que possa sobreviver por gerações sem o fundamento cultural e seu desenvolvimento.

A cultura revela-se no pequeno e no grande. Todos são influenciadores e influenciados pela mesma atmosfera que envolve o movimento e têm seu comportamento modulado por ela. Esse movimento não sobrevive sem aqueles que se ocupam em compreendê-lo, dar-lhe forma e garantir a transcendência, permitindo àqueles do porvir conhecer o que pensavam seus antecedentes.

E o movimento cultural não se firma sem que seus fundamentos fiquem claros, possam ser compreendidos facilmente, ainda que, em algum momento, se tornem mais seletivos e até herméticos, quando surge o que se convencionou chamar de “alta cultura”.

Tudo nasce do básico e do natural, e partir disso se desenvolve. Estamos desafiados a interpretar esses elementos essenciais, sob pena de não ser possível a sobrevivência ancestral.

“Cabe-nos entender como fomos colhidos pelo vórtice desse fenômeno que nos encaminhou a uma vida toda de ações e pensamentos.”

O sentido amplo dos fenômenos deve ser destacado, e estudado, a bem de que aqueles a quem se destina a superior tarefa de ensinar saibam exatamente o escopo de seu ensinamento.

Talvez mais do que em outras atividades, tratamos do ser humano, seu corpo, funcionamento neuro-físico, ação do cérebro e formação da mente. Ocupamo-nos do humano em todos os sentidos, inclusive com suas manifestações e sentimentos mais elementares, como a dor, o medo, o cansaço, mas também o prazer, a realização e a plenitude.

Cabe-nos entender como fomos colhidos pelo vórtice desse fenômeno, que nos encaminhou a uma vida toda de ações e pensamentos.

Cada movimento tem seu fundamento óbvio e imediato, mas há outro profundo, que desafia o entendimento. Nesse plano, a mente deve dirigir-se ao sentido original de cada ação, dela retirando as razões de sua eficiência ou ineficiência e sua consequência moral e filosófica. Nessas razões o elemento central da cultura: o porquê.

Há muito o que explorar e, como em qualquer movimento cultural que se pretende transcendente, não se pode esperar de apenas uma geração o desenvolvimento de todos os conhecimentos. O que há é a necessidade de que os posteriores partam de onde chegaram os anteriores.

Por isso é importante deixar registrado o que foi feito e pensado para entender o que existe e se vê, e explorar os significados que são caros aos que praticam, mesmo sem sabê-lo. É necessário estudar, e compreender, o que significa equilíbrio, honradez, honestidade, lealdade, determinação, pertinácia, retidão, eficiência, tranquilidade, foco, atenção, consciência, respeito, convicção, oportunidade, não-agressão, razão, olhar superficial e profundo, o outro, si mesmo, e todos os demais elementos, cada um com seu próprio universo quase infinito de significados e interpretações.

É necessário, da mesma forma, contar o que já aconteceu, produzir uma literatura própria, em sua seminal tarefa de tornar imortal o que foi feito e pensado pelos mortais.

Em todas as atividades marciais esses elementos estão em execução e exploração, e não poderemos exprimi-los sem que os conheçamos profundamente.

Isso requer o trabalho de gerações, uma após a outra, no escrutínio dessas verdades, não tão aparentes, capazes de fomentar os valores que devem ser internalizados nos praticantes e, antes, em seus professores e instrutores.

Estou a fazer o que me toca.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.

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