Esportes de combate, artes marciais, lutas: terminologias em debate

No shikendo, aprende-se através da luta com espadas o domínio da estratégia e a importância de conhecer a si mesmo e ao inimigo – Foto Revista Kiai

O texto apresenta um pequeno debate sobre termos usualmente utilizado na prática esportiva das lutas e inaugura um espaço de apresentação acadêmica na revista Budô

Budô & Pesquisa
26 de fevereiro de 2020
Por ALEXANDRE JANOTTA DRIGO
Curitiba – PR

A revista Budô é um veículo informativo de divulgação e atualização voltado à comunidade das lutas. Por intermédio de seu editor, Paulo Pinto, fomos convidados a escrever textos sobre ciência, tecnologia e pedagogia relacionados aos esportes de combate. Neste sentido, agradecemos ao editor e iniciaremos o desafio que nos foi dado pelo debate sobre terminologias oriundas das artes marciais.

Consideramos debate, pois lançaremos um olhar que pode fazer sentido para muitos, porém sem a pretensão de ser a verdade absoluta. A ideia é movimentar o conhecimento, possibilitando entender que toda produção humana é dinâmica, histórica e geograficamente rediscutida e renovada.

Desta forma, o artigo a seguir é uma adaptação de um parecer sobre o tema artes marciais solicitado pelo Conselho Regional de Educação Física da 4ª Região – São Paulo (CREF4/SP) pelo então presidente Nélson Leme da Silva Júnior. O texto é de nossa autoria e possibilita uma boa reflexão a respeito de terminologia e conceituação do termo artes marciais.

O judô é um dos melhores exemplos para o termo esportes de combate – Foto Gabriela Sabau/IJF

O termo artes marciais corresponde a uma atividade humana relacionada com o treinamento para guerra. Podemos identificar este sentido estrito ao dissecarmos a composição do termo arte, que, apesar de corriqueiramente ser relacionado com a atividade artística, também pode significar arte de ofício oriunda do artesanato (e da formação artesanal) da Europa medieval (RUGIU, 1998). Considerando que a arte de ofício esteja atrelada à habilidade ou técnica para a realização de determinado ofício, a interpretação mais adequada para a avaliação do termo é de arte no sentido artesanal e não artístico, seguido pelo termo marcial, relativo a Marte, deus romano da guerra. Portanto, a definição mais simples do termo seria de treinamento militar para obtenção de habilidades ou técnicas para a guerra.

Obviamente, no contexto da estrutura social atual, tal termo adquiriu conotações diferentes, causadas tanto pela forma coloquial com que é utilizado por falta de definições padronizadas quanto pela espetacularização dada pelo cinema e outros veículos de construção do imaginário social.

Para iniciar a desconstrução do senso comum, e em busca do entendimento do termo de forma mais precisa, Reid e Croucher (2010, p.12) indicam que arte marcial:

Trata-se evidentemente de um termo ocidental que deriva do termo latino do planeta Marte, o deus romano da guerra. Foi escrito pela primeira vez em língua inglesa no ano de 1357, por Geoffrey Chaucer, que se referiu ao “tourney marcial” da época medieval. Em 1430, o termo já era usado em referência ao treinamento para guerra, aos próprios atos de guerra (…).

É possível considerar que o termo arte marcial na Idade Média se relacionou ao contexto sociocultural da época, com significado de uma arte de ofício. Também vale a pena ressaltar que, na Antiguidade, o deus Marte não era patrono das lutas gregas – que era o deus Mercúrio – e nem da estratégia militar – que era a deusa Minerva. Outrossim, ele era o deus da guerra selvagem e sangrenta, da carnificina. Esta informação é um pouco conflitante em relação ao esperado por dois motivos:

  • Na Idade Média, a escolha de Marte e não Mercúrio (Hermes) como patrono das lutas denota a preocupação em relação à formação militar em detrimento da ação relacionada a jogos com regras limitantes, que na modernidade tornou-se esporte;
  • Na Antiguidade, Minerva, e não Marte, era a deusa patronesse das técnicas refinadas e estratégia de guerra, que corresponderia, em parte, às lutas organizadas tecnicamente, que geraram as esportivas da modernidade. Assim, há o indício de que, ao apropriar-se do nome artes marciais, a escolha teve aparente conotação machista, relacionada à época em que se originou, mais do que de uma identificação coerente.

Desta forma indica-se, então, que artes marciais é um termo usualmente utilizado pela herança histórica do mundo ocidental, mas passível de discussão e reflexão sobre sua utilização na sociedade atual, da mesma forma que países orientais fizeram no decorrer de seu desenvolvimento.

Modalidade olímpica, a luta greco-romana sempre foi classificada como esporte de combate – Foto Marwan Naamani/AFP

Em relação à identificação da terminologia artes marciais relacionada à denominação das lutas orientais, mais especificamente do Japão, os linguistas Ratti e Westbrook (2006, p. 24) apontam como semanticamente equivalente o termo bujutsu, que significa técnica militar (bu=militar; jutsu=técnica). O importante é ressaltar que os mesmos autores afirmam que bujutsu parece estar particularmente relacionado à natureza técnica e à funcionalidade estratégica destas artes. Os autores ressaltam que:

(…) o Bujutsu, queremos destacar, está especialmente relacionado com os aspectos práticos, técnicos e estratégicos das artes indicadas com ideograma da técnica. Quando estas especializações (modalidades) são entendidas como disciplinas com uma finalidade ou propósito de uma natureza mais educativa ou ética, a “técnica” converte-se em “caminho” (do), que significa a “senda” em direção a uma realização mais espiritual do que puramente prática.

De forma análoga, o professor Manoel José Gomes Tubino, renomado pesquisador e gestor brasileiro, já se preocupava com a contemporaneidade do termo e apresentava argumentação que coaduna com o que tem sido observado, que as artes marciais “atualmente, têm um largo emprego como defesa pessoal, esporte, meio para aptidão física e saúde, meio de educação etc.” (TUBINO, TUBINO e GARRIDO, 2007, p. 164). Outros autores, como Mocarzel e Murad (2012, p.91), refletem que tal atitude não influencia o respeito às modalidades, pois:

É de se ressaltar, ponderando as premissas anteriores, que hoje muitas “artes marciais” são um conjunto de ferramentas socioeducativas que contribuem para o desenvolvimento físico e na estruturação do comportamento e do caráter de seus praticantes, independentemente do local e/ou cultura, respeitando preceitos ético-filosóficos durante sua prática.

As informações dadas pelos autores anteriores corroboram a interpretação de que artes marciais se referem a atividades práticas de técnicas artesanais e não artísticas, e que o termo correspondente em japonês não define a atividade educacional ou ética, ficando a cargo da preparação militar, assim necessitando de nova definição linguística para explicar tais mudanças. Concordando com os autores, identifica-se: 

Marcial está, entretanto, etimologicamente relacionado com Marte (…), e consequentemente com guerra, guerreiros, atividades militares e soldados. Portanto, essa suposição pode nos levar também a classificar as especializações do combate (modalidades) como artes da guerra, associando-as, consequentemente, mais com o campo de batalha e com as intervenções massivas de homens e material do que confrontos individuais. (Ratti e Westbrook, 2006, p. 26).

Com uma proposta científica, o karatê tradicional foi criado por Hidetaka Nishiyama em 1974 e hoje possui apelo eminentemente socioeducativo – Foto Paulo Pinto/Budopress

Neste foco de discussão, Tubino (2010 p.45) apresenta e define que “esportes das artes marciais são aqueles derivados das artes militares ou marciais da Ásia (exemplos: jiu-jitsu, judô, karatê etc.). Assim, o vínculo da atividade com a modernidade por meio do esporte é enaltecido. Em estudos variados, outros autores acadêmicos apresentam este olhar esportivo sobre as ditas artes marciais. Cesana (2011), em sua tese de doutoramento, estudando práticas integrativas orientais, fundamenta que os praticantes e instrutores de modalidades de judô, kung-fu, capoeira, karatê, boxe e jiu-jitsu identificam e definem suas práticas com o esporte. Franchini e Del Vecchio (2011) apresentam um estudo sobre modalidades esportivas de combate, diferenciando de lutas e artes marciais, por conterem características esportivas como: quantificação, superação, burocratização e institucionalização via federações e organizações, secularização, especialização e racionalização. Por fim, em outro estudo interessante, Ferreira, Lise e Capraro (2016, p. 15) apresentam que:

(…) as artes marciais tradicionais, em especial aquelas de origem oriental (Índia, Japão, China, Tailândia etc.) possuíam tanto na sua etimologia quanto em sua prática um caráter beligerante ou religioso, no qual a intenção era matar ou inutilizar seu adversário (inimigo), afastando-se assim da lógica esportiva moderna. Neste sentido, consideram-se esporte de combate o judô, o jiu-jitsu, o karatê, o taekwondo e o kung- fu, entre outros. Tais práticas há muito tempo perderam seu caráter marcial (alusivo à guerra e à morte) e se esportivizaram a partir de um processo de ocidentalização, cujas principais adaptações foram: as regulamentações escritas, o controle dos níveis de contato e violência permitidos em tais disputas e as condições de igualdade entre os oponentes (divisão por categorias de peso, faixas etc.), entre outras.

Em conclusão, resta fundamentado que as artes marciais devem ser entendidas por atividades de formação militar e devem ser enquadradas no âmbito das competências (legislativas, profissionais e cíveis) a que se destinam. Apesar de seu uso pelo senso comum, não se deve confundir com a atividade que de fato emergiu durante a sociedade contemporânea, que a vincula ao esporte.

Assim, do ponto de vista da atualidade, esportes de combate e modalidades de combate são termos mais adequados para definir os esportes derivados de artes marciais (o judô, o karatê, o kung-fu, o kendo, o kempo, a capoeira esportiva, o jiu-jitsu, o taekwondo, o boxe, as lutas olímpicas e greco-romana, o kickboxing, o muaythai, o sumô e inúmeras outras) na atualidade, sem causar confusões anacrônicas e sociogeográficas. A insistência na utilização de termos inadequados por sua usualidade tradicional não permite perceber equívocos em sua criação, nem na interpretação de seus conceitos, tornando-o autoexplicativo.

Em outras palavras, em muitos casos dão-se interpretações para a terminologia artes marciais ajustando-se às necessidades e aos interesses momentâneos, sem observar as incoerências apontadas em estudos que foram citados que o termo carrega, destacando-se arte de ofício trocada por arte estética e a relação de escolha entre Marte (carnificina) e Minerva (estratégia).

Referências bibliográficas que deram suporte ao presente texto

CESANA, J.  Práticas corporais alternativas e educação física: entre a formação e a intervenção.  Tese de Doutorado – Faculdade de Educação Física/UNICAMP –Campinas, SP: 2011.

FERREIRA, F. D. C.; LISE, R. S.; CAPRARO, A. M. Fontes para a história dos esportes de combate.  In: PIMENTA, T; DRIGO, A. J. (Orgs) Contribuição das ciências humanas nas artes marciais: formação profissional, história e sociologia. São Paulo: Oficina do Livro, 2016.

FRANCHINI, E; Del VECCHIO, F.B. Estudos em modalidades esportivas de combate: estado da arte. Rev. bras. Educ. Fís. Esporte, São Paulo, v.25, p.67-81, dez. 2011 N. esp. 67

MOCARZEL, R.C.S.; MURAD, M. Sobre o homo diciplinatus: uma visão sócio antropológica do artista marcial. Corpus et Scientia, Rio de Janeiro, v.8, n.2, p.87-98, out. 2012.

RATTI, O.; WESTBROOK, A. O segredo dos samurais: as artes marciais do Japão Feudal. (Trad: Cristina Mendes Rodríguez).  São Paulo: Madras, 2006.

REID, H.; CROUCHER, M.  O caminho do guerreiro: o paradoxo das artes marciais.  (Trad: Marcelo Brandão Cipolla). 11ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2010.

RUGIU, A. S. Nostalgia do mestre artesão. Campinas, SP: Editores Associados, 1998.

TUBINO, M.J.G.; TUBINO, F.M.; GARRIDO, F.A.C. Dicionário Enciclopédico Tubino do Esporte. Rio de Janeiro: SENAC, 2007.

TUBINO, M. J. G.  Estudos brasileiros sobre o esporte: ênfase no esporte-educação / Manoel Tubino. – Maringá: Eduem, 2010. 163 p.

O professor doutor Alexandre Janotta Drigo é bacharel em biologia e educação física (EF), mestre em ciências da motricidade pela Unesp/RC; doutor em EF pela Unicamp e orientador da pós-graduação em ciências da motricidade da Unesp. Pesquisa formação profissional em EF, atividade física e saúde, lutas e metodologia do treinamento. Membro do Conselho Federal do CONFEF, tem 63 artigos científicos publicados no Brasil e no exterior, dez livros e 22 capítulos, entre outras produções.