Karatê-dô, formação do tzuki e teoria trifásica

É na perspectiva do conhecimento que o observador mantém contacto com o objeto observado pela cognição

A eficiência do golpe linear tzuki tem origem na trajetória curta e direta, na velocidade e na dificuldade de visualização pelo adversário. Sua potência relaciona-se à aplicação da terceira Lei de Newton: a ação sobre o solo e a reação

Karatê-dô Tradicional
29 de junho de 2020
Fonte FERNANDO MALHEIROS FILHO I Fotos BUDOPRESS
Curitiba – PR

Sei que, lamentavelmente, poucos professores, instrutores e praticantes têm preocupações teóricas com o exercício e a aplicação do karatê-dô. É até compreensível que assim seja nesse mundo de superficialidades e na visão, ainda ocidental, das práticas que envolvem o corpo, normalmente desacompanhadas de reflexão mais profunda, própria da filosofia, e todas as suas especulações.

Afora isso, pertencendo ao universo maior do Zen, as artes marciais japonesas carregam o vezo histórico de não serem suscetíveis de explicação verbal ou escrita, exigindo a experiência direta.

Mas essa última representa apenas meia verdade. Sendo verdadeiro que a experiência “zenista” exige o exercício pessoal, somente dele sendo possível extrair o sentido último da prática, naquilo a que se refere à consciência do ser de si mesmo, é igualmente verdadeiro que o meio para atingir esse objetivo é essencialmente observável e cognoscível, passível de adequada teorização.

Àqueles que desdenham a teoria, por sua abstração, o meu desdém. Não há atividade humana, em qualquer campo e a qualquer tempo, que não tenha demandado o esforço teórico, representado pela interação intelectual do pensante com o objeto de sua reflexão.

É na perspectiva do conhecimento que o observador mantém contacto com o objeto observado pela cognição, e somente esta última, e tudo que significa, permitirá o desenvolvimento de todas as potencialidades ou usos do objeto.

Para quem leu as palavras acima, e não as compreendeu inteiramente, serei mais objetivo: no início e na realidade, tínhamos homens e pedras; hoje temos homens e tudo que se fez com as pedras (desde a flecha de sílex até toda a tecnologia moderna).

Nada disso acometer-nos-ia se não nos fosse possível teorizar o uso das pedras com o emprego da razão, tudo inserido no que conhecemos por epistemologia, isto é, o estudo do conhecimento.

Nessa perspectiva o tzuki, para estas linhas, é o fenômeno observável, e o observador, qualquer um de nós. Acrescento que a base fenomenológica da observação multiplicou-se infinitamente com a chegada do conhecimento em rede, tornando ainda mais necessário o esforço teórico, pela síntese de todas as experiências: a pessoal e todas as demais disponíveis. A rede multiplicou os efeitos da imagem e retirou o conhecimento da esfera exclusiva dos sábios e daqueles que beberam na fonte primária. Todos, em todos os lugares, passaram à condição de fonte, campo de experiência e formuladores teóricos.

Dessa observação retirei algumas conclusões teóricas que, para alguma surpresa minha, se confirmaram pela experiência. Desfiz alguns mitos e configurei a base teórica para a prática: a minha e daqueles a quem pretendo ensinar.

A premissa fundamental é a de que o golpe linear (tzuki) tem sua eficiência com origem na trajetória curta e direta, na velocidade e na  dificuldade de visualização pelo seu alvo (o adversário), e sua potência relacionada com a aplicação da terceira Lei de Newton (ação sobre o solo e a reação).

Melhor dizendo, ao completar sua trajetória, estando o corpo de quem o executa ereto, podendo transferir, sem obstáculos, toda a energia projetada pela pressão do corpo no solo (ação e reação), esta alcança o alvo, nele prorrompendo o efeito desejado (inabilitação ou lesão do alvejado).

Essa sucessão de fenômenos exige compreensão contraintuitiva. O praticante inexperiente tem a sensação de que a tensão muscular do braço arremessado é parte integrante do fenômeno, experimentando que a inclinação do corpo (e da cabeça) em direção ao alvo é também elemento pertencente à técnica. Assim obtém o resultado contrário ao seu propósito.

O alinhamento cervical e das articulações (dos braços e das pernas) é indispensável ao resultado pretendido, para a exata “transmissão energética” e no curtíssimo lapso do tempo em que a técnica deve ser aplicada (entre 1/10 e até 1/20 de segundo, para um metro).

Para que o fenômeno possa dar-se, e nessa velocidade e imediata reação, são indispensáveis elementos físicos e de compreensão sem os quais se torna virtualmente impossível. O resultado, sem tais pressupostos, é tão inútil quanto perigoso.

O primeiro elemento deve ser encontrado na essência do ser. É conhecido como ki e o kime, ou a convicção e o senso de oportunidade, ambos a exigir o estado alterado da consciência.

Fisicamente, a tensão muscular dos braços, por sua natureza mesma, é contrária à velocidade e espontaneidade na execução da técnica. Ao invés de arremessar contém, trava, freia. O braço, portanto, deve estar relaxado.

Teoricamente a equação pode ser concentrada na tríade: relaxa, endereça e empurra (ou acelera), na qual o relaxamento é aquele em que a não-atuação muscular desprega o membro do corpo, retirando-o da inércia; o endereçamento é a mínima atuação muscular para dar direção ao movimento; e a aceleração é a atuação corporal final (terço final), quando o braço, finalmente, recebe o empuxo da pressão das pernas sobre o solo (segunda Lei de Newton, da mudança do movimento), desde que exercido na forma adequada.

O apuro técnico decorre do curtíssimo espaço de tempo para que as três etapas se consolidem, de aproximadamente 1/10 de segundo, entre o momento em que o movimento dispara até atingir seu alvo. Nesse interregno, a percepção visual não capta a existência das etapas, mas que, no entanto, estão lá.

Retirei essa impressão da observação em vários níveis, adotando-a como correta, e aplicando-a com maior eficiência, logo depois concluindo que se cuida da compreensão teórica correta, quer para aqueles que a aplicam intuitivamente, quer para aqueles que se detiveram em compreendê-la.

Adicionalmente, o outro braço (hikite) não obedece ao mesmo critério. Não se destinando a acertar o alvo com precisão, mas apenas compor o espectro do equilíbrio, tem na puxada um movimento único, que deve aguardar, aproximadamente, o “terço final” para se dar.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô,
historiador e advogado, especialista
em direito da família e sucessões.