O Budô e as camadas submersas

Sabemos que a superfície, em tudo, esconde as profundezas, e estas existem em inúmeras camadas © Freepik

A arte marcial haverá de ser, em relação ao praticante, a fonte de novas interrogações nesse constante questionamento de todo ser humano sobre o sentido da vida e o que fazer dela.

Por Fernando Malheiros Filho
18 de maio de 2023 / Curitiba (PR)

Interpretar fenômenos de toda espécie é a tarefa do pensamento, atribuída aos seres humanos. Sabemos que a superfície, em tudo, esconde as profundezas, e estas existem em inúmeras camadas. Não é diferente com a prática de artes marciais.

O que não sabemos, salvo após aguda reflexão, é quais camadas estão sobrepostas, e quais delas são mais próximas da superfície e quais são as mais profundas.

É intuitivo que o praticante, ao começar em qualquer das modalidades disponíveis, em primeiro lugar tenha contato com a técnica. Aprenderá como usar o corpo e a mente para o propósito imediato, obtendo os resultados. Ficará intrigado com a reversão da visão imediata da explicação dos fenômenos, constatando que haverá de reeducar seu corpo e mente para o propósito central: torná-los mais eficientes.

Além, o praticante poderá desfrutar os resultados estéticos. A eficiência, quase sempre, envolve a beleza, das formas e dos pensamentos.

Logo adiante, perceberá o praticante que a reunião dos alunos em torno do professor habilitado a ministrar-lhes os ensinamentos não se esgota nisso, mas ultrapassa em muito esse objetivo inicial. Emulam-se, no ambiente da prática, os laços originais da família, referencial fundamental de todo ser humano. Estabelecem-se relações paterno-filiais entre o professor e os alunos, entre os mais velhos e mais moços, entre os praticantes mais antigos e os mais recentes. Semeiam-se os vínculos fraternais que, com frequência, acompanharão todos para o resto de suas vidas.

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Essa interação não poderá ser evitada, nem é desejável que tal aconteça. Passamos a vida em busca dessas razões de viver, fundamentais e originais, tentando soldar as fraturas e ocupar o vácuo que sempre existe na alma de qualquer pessoa. A fecunda convivência no âmbito do dojô não haverá de ser diferente.

Destaca-se, nesse ponto, a virtude educacional. Os alunos estão à disposição do professor para serem educados, o que normalmente significa conter instintos, domar impulsos e compreender que a execução de qualquer ato deve ser desenvolvida a partir do conhecimento precedente. Não nascemos sabendo ― por mais tentador que possa ser imaginá-lo ―, mas absorvemos aquilo as gerações anteriores acumularam, para o bem e para o mal.

Vividas essas etapas, cuja proficiência em favor de todos dependerá da capacidade individual de entendê-las, abre-se outro portal, ainda mais complexo: o filosófico.

A arte marcial haverá de ser, em relação ao praticante, a fonte de novas interrogações, nesse constante questionamento que todo ser humano há de ter sobre o sentido da vida e o que fazer dela. Elementos que, na superfície, mostram-se meramente técnicos, ganharão novas leituras, nesse universo holístico em que estamos inseridos, no qual tudo tem relação com tudo. Entender essas tantas relações passa a ser o desafio seguinte.

A quem não alcançou a reflexão acima, exemplifico: os valores que desenvolvemos não são exclusivos da prática marcial, apenas deles tratamos na especificidade do treinamento. Todos transcendem o ambiente do dojô, evidenciando as camadas submersas. Ninguém ignorará a importância do equilíbrio (simetria), da eficiência (sintonia), da posição mental, do tempo (sincronia), da resiliência, do foco, da visão, da consciência do entorno, nas percepções para todas, sem exceção, atividades humanas.

Nesse plano, o que está submerso ganhará luz. Vamos constatando cada uma das potencialidades, que desenvolver-se-ão aplicando-as não exclusivamente à prática marcial, mas aos demais aspectos da vida. A prática converte-se no “laboratório” no qual experimentamos aquilo de que somos feitos, para melhor utilizar todas as potencialidades, sempre que for exigido aplicá-las.

Trata-se de isolar e compreender os valores, compreendendo sua hierarquia e aplicação em cada circunstância. O artista marcial, nesse ponto, afasta-se ― mas sem jamais perder a proximidade ―, da aplicação da técnica em cada situação, partindo em busca de sua significação.

O aprendizado deixa a atmosfera exclusivamente prática e ganha o elemento espiritual © Budopress

Valorar não se esgota em encontrar os valores e desenvolvê-los, mas envolve relacioná-los com os demais elementos da vida. O aprendizado deixa a atmosfera exclusivamente prática e ganha o elemento espiritual.

Nesse ponto, sendo possível, e tendo o professor e seus alunos consciência disso, alcança-se a transcendência. A prática não mais se resume ao fim em si mesmo, ou aos aspectos meramente funcionais. Atinge outros patamares, ampliando os horizontes do praticante, que volta sua “visão” para dentro, para encontrar aquilo que existe, mas desconhece. Inicia a jornada para o autoconhecimento que somente se encerra com a morte.

No momento, então, surgem as indagações metafísicas; essa tentativa, quase sempre sem êxito, de tentar explicar o inexplicável – como a morte, de que o ser humano é o único vivo que tem consciência.

A morte, em todas as suas significações, sobrepaira o praticante. Começa que a arte marcial, em seus primórdios, foi desenvolvida para causar a morte dos inimigos. Mas matá-los, além de se transformar em propósito remoto em tempos nos quais a arte se converteu em instrumento educacional, deixou de ser o objetivo à frente. O praticante depara-se com a própria morte, e dela recebe os sinais, diariamente, com o envelhecimento. Compreender essa perda gradual e constante passa a ser o desafio central.

É quando a destreza vai abandonando o corpo, mesmo dos mais destros. O professor e os praticantes lutam contra o desfecho final, e é isso que se espera deles, mas também se cobra que compreendam esse fim inevitável, e saibam disso retirar o que há de sabedoria.

Essa sabedoria, finalmente, é o objetivo remoto, mas o mais relevante, que será inalcançável sempre que, e desde o princípio, falte ao praticante o dedo, de quem tem o dever de formá-lo (e informá-lo), apontando para essas camadas invisíveis que subjazem em todos nós.

Fernando Malheiros Filho
é professor de karatê-dô, historiador
e advogado, especialista em direito
da família e sucessões.

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