O judô é uma arte marcial?

Samurai domina o inimigo com técnicas do bu-jutsu © Sharp, M. – Samurai Battles – Compendium Publishing Ltd, London 2009

O termo arte marcial faz referência às lutas originárias da Ásia Oriental que tinham objetivos específicos de preparação para a guerra.

Por Prof. Me.Odair Borges
10 de agosto de 2023 / Curitiba (PR)

Ab initio, é preciso fazer uma análise etimológica do termo “marcial”. Derivado do latim “martialis” – de Marte, deus romano da guerra –, está desse modo relacionado com guerra, bélico, guerreiro, conflito, hostilidade etc. Essa expressão, traduzida para o inglês como “martial arts”, causa de grande confusão ao nomear e colocar num mesmo nível todas as lutas orientais, principalmente chinesas, coreanas e japonesas.

É um termo que identifica e caracteriza várias lutas como técnicas preparatórias para a guerra. A utilização indiscriminada dessa terminologia, primordialmente para o judô, é considerada inadequada, imprópria e descabida, não condizente com os objetivos educativos dessa modalidade, cujo objetivo é o aperfeiçoamento do ser humano em benefício da sociedade.

Arte marcial é um termo que faz referência às lutas originárias da Ásia Oriental, que tinham objetivos específicos de preparação para a guerra. Tanto os antigos wu shu chinês, quanto o bu-jutso ou bugei japonês eram artes guerreiras, portanto sim, consideradas lutas marciais, técnicas marciais ou artes marciais.

O ju-jutsu, que deu origem ao judô, teve sua origem no bu-jutsu, arte guerreira utilizada para denotar técnicas e métodos de combate desenvolvidos e praticados pelos membros da classe militar, os bushi (samurai). Portanto, o termo bu-jutsu identificava até certa época no Japão as artes guerreiras, ou marciais, utilizadas em combate real até a morte ou com fins bélicos.

A perfeição técnica do judô direcionada pelo Budô © Divulgação

Segundo Draeger, D. (1974), “jutsu era então uma palavra comum muita usada na época do Japão feudal, pois completava os nomes de todas as artes guerreiras. Todas as formas de jutsu, isto é, aqueles sistemas de combate cujos nomes incluíam o sufixo jutsu, foram desenvolvidas por meio do bu-jutsu”.

O shihan Jigoro Kano, do mesmo modo, relatava: “O objetivo do combate na forma do bu-jutsu (arte guerreira, marcial) era de infligir dor ao adversário, atordoá-lo temporariamente ou matá-lo imediatamente, arremessando-o ou atingindo pontos vitais (atemi-waza) de seu corpo com as mãos, dedos, braços, pés, joelhos ou cabeça. Existem muitas maneiras de conseguir isso, mas os métodos mais comuns são os que atingem a área da cabeça do adversário, o peito, o estômago e testículos”.

O bu-jutsu, assim, estava relacionado com os aspectos guerreiros, práticos, técnicos e estratégicos para o combate. Quando esses métodos foram tratados como lutas esportivas, como no judô, com uma finalidade de natureza mais educativa e ética, Jigoro Kano shihan trocou o ideograma “jutsu”, que significa “técnica”, pelo “do”, que significa “caminho, direção ou conduta”.

De acordo com seu ideal, a troca daria uma conotação bem mais próxima de seus objetivos filosóficos e educacionais em benefício da sociedade, constituindo-se numa modalidade do Budô, “caminho do guerreiro”, com aspectos mais filosóficos e práticas de luta subordinadas ao propósito de aperfeiçoamento do ser humano para alcançar objetivos diferentes dos antigos métodos marciais ou guerreiros.

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O Budô é considerado o caminho, a conduta, a direção para aperfeiçoamento moral com o propósito de favorecer a formação de uma personalidade madura, equilibrada e total do indivíduo em paz consigo mesmo em harmonia com a sociedade.

O Do ou Tao, filosoficamente, tem um significado mais pedagógico, mais estruturado, com aplicação no exercício físico, na educação e na recreação, referências que são da área acadêmica, do esporte como ciência moderna e contemporânea.

Consequentemente, o judô não possui nenhuma relação com técnicas guerreiras ou arte marcial, termos esses que são pertinentes ao treino militar e à letalidade de técnicas aplicadas enquanto defesa individual, de um povo, de uma determinada casta social ou de um governo.

Pelo mérito de todas as considerações históricas e acadêmicas, a Federação Internacional de Judô, em congresso realizado na universidade Lomonosov, durante os Jogos Olímpicos de Moscou, colocou em pauta o referido tema. O presidente da Federação Internacional de Judô na época, Shigeyoshi Matsumae, e representantes de 77 países membros da FIJ aprovaram e decidiram que “judô é um esporte do programa olímpico e não é, e nem deve ser, referenciado ou citado como arte marcial”*. Foi uma decisão definitiva conforme proposta anteriormente apresentada pelo comitê diretor da FIJ, reunido em Marrakech (Marrocos) em abril de 1979. (Kindai Judo – 1980 – Tokyo, Japan).

Concluindo, podemos dizer que o judô, no seu processo de transformação do antigo bu-jutsu – arte guerreira que era um conjunto de técnicas para ferir ou matar o adversário –, se desenvolveu para tornar-se um esporte olímpico de grande notoriedade. Kano shihan, ao idealizar o judô, deu a ele uma vertente filosófica e moral que orienta sua prática como um meio e não como uma finalidade.

Portanto, quando se fala em arte marcial, estamos nos referindo às técnicas ou artes guerreiras. O judô, como Budô e como outras lutas de origem japonesa, tem raízes na filosofia zen, a qual prega primordialmente a harmonia entre corpo e espírito. Faz-se necessário, então, não divulgar e não propagar o judô educativo do shihan Jigoro Kano como luta guerreira ou arte marcial.