Brasil perde Liogi Suzuki, a principal referência ética e moral do judô paranaense

Professor kodansha Liogi Suzuki 1943 / 2025 © Global Sports

“Na questão competitiva estamos em um processo irreversível, mas espero que o judô nunca deixe de ser uma fonte de inspiração e que seus princípios éticos e educacionais se perpetuem.”

Por Paulo Pinto / Global Sports
Curitiba, 4 de março de 2025

A Federação Paranaense de Judô (FPrJudô) comunicou, nesta segunda-feira (3), o falecimento do professor kodansha kyuu-dan (9º dan) Liogi Suzuki, ocorrido à noite em decorrência de complicações de uma parada cardíaca sofrida em 16 de fevereiro.

Nascido em 9 de julho de 1943, em Lins (SP), Liogi Suzuki teve seus primeiros contatos com o judô aos 7 anos de idade. Para incentivá-lo a levantar cedo, seu pai, Ioshimaza Suzuki, o chamava às 4 da manhã para, ainda sonolento, praticar esgrima com espadas de bambu. Sua mãe, Soyoko, chorava ao vê-lo ser submetido aos rigorosos treinamentos paternos.

Aos 7 anos, Suzuki começou a treinar judô sob a orientação do professor Shoiti Tida, que veio de Bastos (SP) para lecionar em um educandário de língua japonesa em Londrina (Seriô Gakuen). Em entrevista à Revista Budô, em 2012, sensei Suzuki relembrou com carinho seu primeiro professor, cujo seoi-nage de esquerda era aplicado com extraordinária maestria. Shoiti Tida faleceu em 1985, mas deixou um legado marcante, tendo participado da fundação da FPrJudô em 7 de outubro de 1961.

Trajetória no judô e na vida acadêmica

Após conquistar a faixa-preta em 1960, Suzuki passou a auxiliar o professor Tida no educandário até 1963. Em 1964, mudou-se para São Paulo, com o objetivo de ingressar em uma faculdade de ciências econômicas, já que havia concluído o curso técnico em contabilidade. No entanto, contrariando o desejo dos pais, optou por cursar Educação Física.

Mateus Sugizaki e Liogi Suzuki, campeã e vice-campeão em Lisboa 1968 © Arquivo

Entre 1964 e 1966, foi contratado pela Associação Ono de Judô, onde passou a dar aulas todos os dias da semana, inclusive aos sábados e domingos. Com isso, acabou abandonando os estudos em Educação Física, mas, após algum tempo, a saudade o fez retornar para Londrina.

Sobre sua passagem por São Paulo, sensei Suzuki destacou sua relação com a família Ono. “Comecei a frequentar a academia do professor Ono porque já havia competido com Akira Ono. Fui treinando e acabei conquistando a confiança do patriarca, Yasuichi Ono, tornando-me instrutor. Permaneci em São Paulo até o início de 1966. Durante esse período, conheci grandes atletas paulistas, como Akira Ono e Takayuki Nishida, que mais tarde se tornou um dos adversários mais difíceis que enfrentei. Fui muito bem recebido pelos judocas paulistas e fiz muitas amizades que preservo até hoje.”

De volta a Londrina, recebeu um ultimato do pai. “Ou você vai para a faculdade estudar, ou fica com o judô, mas segue sua vida por conta própria.”

Diante dessa imposição, Suzuki ingressou na Faculdade de Ciências Econômicas de Apucarana, para onde viajava todas as noites até concluir o curso. Formou-se em 1970, mas sua trajetória esportiva já estava consolidada. Em 1968, conquistou o vice-campeonato mundial universitário no peso-pena, em Lisboa, vencendo todas as lutas por ippon.

Carismático, sensei Suzuki sempre emocionava e arrancava sorrisos em seus pronunciamentos © Global Sports

Na mesma competição, destacaram-se outros brasileiros, como Mateus Sugizaki, de Botucatu (SP), campeão mundial dos pesos-leves – o primeiro título mundial da história do judô brasileiro – e Haruo Nishimura, de São Paulo (SP), que ficou em terceiro lugar no meio-pesado. A equipe brasileira também contou com Elly Sassaki (peso-pena), Massaro Saito e Yossuke Nishimura (pesos-médios), além de Nelson Izeckesen (pesado). O técnico da equipe era Edgar Ozon, lenda do Esporte Clube Pinheiros. O Brasil ainda conquistou o bronze por equipes.

Sensei Suzuki possuía um repertório técnico amplo e diversificado, destacando-se por vencer todas as suas lutas por ippon ou wazari. Entre seus golpes favoritos estavam: sasae-tsuri-komi-ashi, ko-uchi-gari, o-uchi-gari, o-soto-gari, sode-tsuri-komi-goshi e o uki-waza.

Legado na educação e no judô

Em 1967, fundou a Associação Suzuki de Judô, inicialmente localizada na Avenida Paraná, 71, onde permaneceu até 1970, quando se mudou para a Rua Fernando de Noronha, 180, endereço que ocupou até 1978. Nesse período, decidiu retomar os estudos e ingressou na Faculdade de Educação Física de Arapongas, onde se formou em 1974.

Ao longo da carreira acadêmica, lecionou em diversas instituições como a Faculdade de Educação Física de Arapongas, Faculdade de Educação Física do Norte do Paraná (Londrina) – 1975 a 1982 e Universidade Estadual de Londrina.

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Em 1999, reabriu a Associação Suzuki de Judô, agora na Rua Prudente de Morais, 245, formando incontáveis campeões ao longo das décadas.

Casado com dona Helena Suzuki, grande incentivadora de seu trabalho, sensei Liogi teve três filhos, que seguiram caminhos distintos do judô. No entanto, seu legado foi muito além da família biológica: ele ajudou a formar milhares de judocas, que não apenas brilharam nos tatamis, mas também se destacaram no mundo empresarial e na sociedade.

Seu impacto no judô brasileiro transcendeu as competições. Ele transmitiu valores que moldaram o caráter de inúmeras gerações, consolidando-se como uma das figuras mais respeitadas e admiradas da modalidade no Brasil.

Trajetória de conquistas e ensinamentos

Em um de seus depoimentos, sensei Liogi Suzuki afirmou que, após mais de meio século dedicado ao judô, sentia-se realizado e gratificado por tudo o que viveu e conquistou. Entre as maiores emoções da carreira, destacou o privilégio de ter subido ao mais alto degrau do pódio, onde pôde ver a Bandeira do Brasil tremular soberana sobre todas as outras. “Esses são momentos realmente inolvidáveis, que embasaram minha escolha pelo ‘caminho suave’.”

Seleção brasileira universitária no mundial de 1968, ao lado estão dois gigantes: Seisetsu Fukaia e Edgar Ozon © Arquivo

Ao longo da vida, Suzuki foi reconhecido por sua técnica refinada e comprometimento com o judô. Seu progresso na hierarquia da modalidade foi contínuo:

■ Ni-dan (2º dan) – 1963
■ San-dan (3º dan) – 1966
■ Yon-dan (4º dan) – 1972
■ Go-dan (5º dan) – 1978
■ Roku-dan (6º dan) – 1984
■ Shichi-dan (7º dan) – 1988
■ Hachi-dan (8º dan) – 1996
■ Kyuu-dan (9º dan) – 2003

Com sua personalidade serena e sábia, sensei Suzuki sempre reforçava a importância dos valores do judô. Para ele, o maior legado de Jigoro Kano ia muito além da competição.

“Temos de ser maleáveis, tolerantes e flexíveis para ajudar nossos semelhantes. Acima de tudo, Jigoro Kano foi um educador, e o judô foi apenas um pedaço de sua obra. Penso que o maior legado que o judô nos oferece são seus ensinamentos.”

Sensei Suzuki foi um idealista que sempre defendeu a essência do Budô © Global Sports

Um professor kodansha na essência da palavra

Remanescente da velha escola do judô arte e defensor incondicional da filosofia criada por Jigoro Kano, sensei Suzuki foi um exemplo de vida e de comprometimento com a educação e o caráter dos judocas. Carismático e respeitado por todos, tornou-se a maior referência do judô no Paraná, um título que nunca almejou, pois sempre rejeitou a vaidade e o ego, características que, segundo ele, corrompem muitos seres humanos.

Ao longo de sua carreira, fez questão de reforçar que seu verdadeiro legado não estava nos títulos, mas sim naquilo que conseguiu transmitir aos seus alunos:

“Praticamente todos os alunos que passaram pela Academia Suzuki de Judô tornaram-se grandes pessoas. São médicos, engenheiros, dentistas, pesquisadores, mas, acima de tudo, cidadãos bem-sucedidos e atuantes na sociedade. Esse é o meu verdadeiro legado, a herança que deixei a eles. Creio que formei mais de dois mil alunos, mas, lamentavelmente, no máximo seis deles seguiram o caminho da docência no judô.”

Preocupado com o futuro da modalidade, sensei Suzuki sempre destacou a obrigação de manter vivos os ensinamentos do shihan Jigoro Kano.

“Vivemos um paradoxo midiático, mas temos a responsabilidade de preservar os preceitos criados por sensei Kano. Antes, os professores também educavam os pequenos judocas e cobravam postura, higiene, respeito aos mais velhos e boa conduta. Hoje, muitas vezes, nem isso podemos fazer, pois os pais não admitem interferências.”

Liogi Suzuki no shiai-jô © Arquivo

Ao ser questionado sobre a mensagem de Jigoro Kano que mais gostava, sua resposta foi direta. “Um coração maleável vence a brutalidade. Na prática, isso significa que devemos ser flexíveis, pacientes e generosos para ajudar nossos semelhantes.”

Pedido especial aos professores do Brasil

Em suas palavras finais na entrevista, o professor Liogi Suzuki fez um pedido aos professores de judô do Brasil.

“Minha mensagem ao Brasil é que, na questão competitiva, estamos em um processo irreversível. Mas espero que o judô nunca deixe de ser uma fonte de inspiração e que seus princípios éticos e educacionais se perpetuem. Peço a todos os professores que mantenham o compromisso de trabalhar incansavelmente por uma sociedade mais justa e melhor.”

Legado eterno

A trajetória de sensei Liogi Suzuki transcendeu os tatamis, deixando uma marca indelével no judô brasileiro. Mais do que um mestre da técnica, ele foi um educador incansável, um formador de caráter e um guardião dos valores essenciais da arte marcial. Sua dedicação à modalidade e à educação moldou gerações de atletas e cidadãos, transmitindo princípios que ultrapassam a prática esportiva e ecoam na vida daqueles que tiveram o privilégio de aprender com ele.

Sensei Suzuki com Sadai Ishihara, introdutor do judô no Paraná, e sua esposa, Dona Kiê, em Açaí, na foto de 1998, quando ambos eram os únicos faixas-vermelhas do estado © Arquivo

Seu legado não se mede apenas por títulos ou conquistas, mas pela ética, disciplina e humanidade que cultivou em cada um de seus alunos. O nome de sensei Suzuki permanecerá vivo na história do judô brasileiro, não apenas como referência técnica, mas como um exemplo de integridade e compromisso com os verdadeiros ensinamentos de Jigoro Kano. Inspirará, por muitas gerações, todos aqueles que seguem o caminho suave com dedicação, respeito e propósito.

Arigato-gozaimashita, sensei Suzuki!

FORMAÇÃO ACADÊMICA
Economista – Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana (1970)
Licenciado em Educação Física – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Arapongas (FAFICLA) (1975)

ATUAÇÃO NA EDUCAÇÃO
Professor de Judô – FAFICLA (1974-1978)
Professor de Judô – Faculdade de Educação Física do Norte do Paraná (1975-1981)
Professor Adjunto – Universidade Estadual de Londrina
Responsável pelas disciplinas:

  •  Judô (a partir de 1978)
  • Sociologia Aplicada à Educação Física e Desporto (a partir de 1991)
  • Deontologia e Ética Profissional (a partir de 1992)

ATIVIDADE NO JUDÔ
Professor de Judô – Academia Seirio-Gakuen (1961-1963)
Instrutor – Associação de Judô Ono, São Paulo (1964-1965)
Professor – Academia de Judô Tenri Kyo (1966-1967)
Fundador – Associação Suzuki de Judô (a partir de 1967)
Responsável pelo Departamento de Judô – Londrina Country Club (1979)
Professor – Associação Cultural e Esportiva de Londrina (1986)
Árbitro nacional (desde 1978) e Árbitro Internacional (desde 1985)
Diretor técnico – Federação Paranaense de Judô (1971-1974)
Presidente da Comissão de Graus da FPrJ (desde 1975)
Membro da Comissão Consultiva da CBJ (1979-1981)
Membro da fundação da Federação Paranaense de Judô (1961)

PRINCIPAIS TÍTULOS
Campeão Brasileiro – 1967 e 1969
Vice-campeão Brasileiro dos Pesos-Pena – 1966 e 1970
Campeão do 10º Encontro Nacional de Judô – 1967 e 1968
Campeão Brasileiro Judôgan – 1968
Campeão Brasileiro Universitário – 1967, 1968 e 1969
Vice-campeão Mundial Universitário – 1968
Campeão Sul-americano – 1970

https://www.originaltatamis.com.br/