A crise no judô japonês é um recado ao judô mundial?

Yasuhiro Yamashita, presidente da Federação Japonesa de Judô e do Comitê Olímpico do Japão © Japantimes

Especialização precoce, cobrança excessiva e muita competitividade em torneios infantis ameaçam a essência do judô e frustram o processo de formação de novos judocas no Japão

Por Paulo Pinto / Global Sports
26 de outubro de 2022 / Curitiba (PR)

A reportagem de 18 de março de 2022 publicada no jornal Asahi, intitulada (em tradução livre) Abolição do torneio nacional de judô para alunos do ensino fundamental, impactou o judô mundial. Mais recentemente, a reportagem de 20 de junho de 2022 da agência de notícias AFP, intitulada (em tradução livre) Judô do Japão atinge ponto de crise enquanto crianças intimidadas e esgotadas desistem de seguir na prática, foi reproduzida mundialmente e, no Brasil, divulgada em portais como R7, Terra e Budô.

Logo em seguida, no dia 26 de junho, o mesmo Asahi expôs apontamentos do comissário da Agência Esportiva do Japão, Koji Murofushi, refletindo a crise no judô japonês, afirmando que “o verdadeiro número 1 do Japão só pode ser selecionado depois de se tornar um estudante do ensino médio ou adulto”. Isso indica que a busca da vitória à custa da saúde física e mental dos estudantes, não é o caminho ideal, muito menos considerando o judô com todos seus princípios e valores estipulados por seu criador, shihan Jigoro Kano.

Excesso de cobrança e competitividade comprometem o futuro da modalidade esportiva mais tradicional do Japão © Arquivo

A atitude da Federação Japonesa de Judô (All Japan Judo Federation) nos remete a profundas reflexões no ambiente doméstico sobre temas que envolvem desde a especialização precoce à cobrança excessiva e truculenta no treinamento de crianças, ao excesso de competitividade em torneios infantis e à busca da vitória a todo e qualquer custo. Arrecadação de valores expressivos em certames infantis e falta de estrutura e atratividade nos eventos, entre outros, são assuntos delicados e polêmicos, assim como as lesões decorrentes da prática do judô. Tudo isso culmina na perda da essência do judô e, no ambiente competitivo, não atende a expectativa de ser uma parte do processo na formação do futuro judoca. E corrobora em parte o discurso de Yasuhiro Yamashita, presidente da Federação Japonesa de Judô e do Comitê Olímpico do Japão.

Koji Murofushi, o comissário da Agência Esportiva do Japão que reflete a crise no judô japonês “O verdadeiro número um do Japão, só pode ser selecionado depois de tornar-se estudante do ensino médio ou um adulto © Asahi

O alemão ex-presidente interino e atual vice-presidente da importantíssima União Europeia de Judô (EJU), Otto Kneitinger, aciona o grito de alerta.

“O que mais nos preocupa é a perda expressiva de filiados. Todas as federações da EJU precisam concentrar-se em recuperar os filiados o mais rapidamente possível. Precisamos focar numa mudança positiva que ofereça resultados imediatos para este problema”. Apenas um exemplo: a Federação Alemã de Judô (Deutscher Judo-Bund) perdeu cerca de 40 mil judocas federados nos últimos quatro anos, ou seja, de 2018 a 2022.

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Todas essas práticas envolvendo as crianças têm contribuído para reduzir o número de praticantes de judô no Japão, Alemanha e outros países, além da própria crise da covid 19, que afastou os praticantes e inibiu a entrada de outros. No Brasil, aparentemente muitos destes aspectos são reais, porém sobram dúvidas devido à falta de estudos e à pouca preocupação da Confederação Brasileira de Judô (CBJ) em mapear efetivamente o esporte no território brasileiro.

“O que mais nos preocupa é a perda expressiva de filiados. Todas as federações da EJU precisam concentrar-se em recuperar os filiados o mais rapidamente possível!”

Arnaldo Queiroz, secretário-geral da FPJudô corrobora as narrativas de Yasuhiro Yamashita e Otto Kneitinger, mas destaca que otimizar a qualidade de todos os setores da gestão é a principal meta da atual gestão da Federação Paulista de Judô.

“Nós também perdemos muitos filiados com a pandemia, mas paulatinamente eles estão voltando. Até 2019 tínhamos cerca de 12 mil filiados, mas projetamos chegar a 15 mil até 2024 e projetamos superar 20 mil até meados de 2028”, prevê Queiroz.

O Japão registra aproximadamente 122 mil atletas anualmente © Arquivo

Para o dirigente paulista a qualidade na gestão ampliará naturalmente o número de agremiações e praticantes federados. “Neste aspecto, entendo que não dá para ver as coisas de forma setorizada. Uma gestão profissional e moderna certamente culminará no aumento de todos os nossos índices. Para nós, a FPJudô é hoje a maior entidade de gestão esportiva regional do planeta”, explicou. “Nosso grande desafio é romper paradigmas e práticas que nos remetam ao passado e construir pontes que nos levem ao futuro, pensando sempre o judô em três frentes: escolar, social e rendimento. Essa transformação passa pelos nossos delegados regionais, mas ela precisa ser fundamentada nos mais de dois mil professores que fazem o ensino da prática do judô”, concluiu Queiroz.

Brasil mostra números divergentes

No Brasil os números são divergentes quanto à quantidade de praticantes. Segundo a CBJ, que considerada todos os envolvidos, incluindo iniciantes, atletas e professores, o Brasil é o segundo país com o maior número de praticantes – 2,5 milhões –, o que para nós é um tremendo absurdo.

Otto Kneitinger, relata que o tema atual, que mais preocupa os dirigentes europeus é a perda significativa de filiados © EJU

Nem mesmo a União Europeia de Judô, com 51 países-membros, chega a este número, sendo estimados atualmente 2,3 milhões de praticantes. No Japão, berço do esporte, estima-se que existam 8 milhões (CNN, 2018) e, no mundo, 40 milhões (FIJ, 2019). Os números brasileiros já foram pauta de conversas e reuniões entre dirigentes no Brasil e Japão.

O professor e pesquisador Rafael Borges faz uma observação pertinente em relação às estatísticas mundiais. “O número absoluto de praticantes varia demais, justamente por não haver pesquisas consistentes ano a ano em todos os países-membros da FIJ. Quanto aos 2,5 milhões de praticantes declarados, não foram encontradas referências claras e palpáveis que justifiquem essa estimativa.”

Sua alteza imperial e embaixadora da FIJ, princesa Tomohito de Mikasa, e Jean-Luc Rouge, secretário-geral da FIJ, com crianças do Instituto Kodokan © IJF

Em suas pesquisas que correlacionam dados publicados pelo Ministério do Esporte, entre outros estudos estatísticos, Rafael Borges conseguiu demonstrar que existe uma possibilidade de haver um número próximo a 2,5 milhões, porém pouco provável de se comprovar de forma cabal com as informações existentes.

Já os registros oficiais de filiados à CBJ, a plataforma Zempo, na qual estão cadastrados somente competidores e técnicos credenciados, somavam quase 110 mil nomes, em maio de 2022. Neste mesmo contexto, atualmente o Japão registra aproximadamente 122 mil e a França, uma referência ocidental, 452 mil. Vale ressaltar que os registros franceses englobam judô e jiu-jitsu.

Professor Rafael de Camargo Borges é ni-dan pela CBJ, sho-dan pela CBJJ e san-dan pela JJIF. Graduado em licenciatura e bacharelado em Educação Física é mestre e doutor em fisiopatologia pela UNICAMP, especialista pela Gama Filho e nutricionista pela Metrocamp © Arquivo

Esses números de “praticantes” de judô no Brasil, bem como os de “filiados”, parecem não refletir a realidade das federações e eventos nem a dos professores, uma vez que os números apresentados pela CBJ só indicam crescimento desde 2015, quando esse levantamento começou, inclusive durante os dois anos de crise da covid 19. Isso indica forte e provável inconsistência nos dados, uma vez que seguem tendência totalmente diferente da observada na França (604 mil em 2013) e no Japão, onde o número de praticantes diminui ano a ano.

Quando os dados brutos são cruzados com as informações de registros efetivamente ativos, ou seja, filiações pagas, verifica-se uma queda abrupta de filiados à CBJ. Dos quase 110 mil atuais, somente cerca de 30 mil estão realmente ativos e registrados, ou seja, com suas taxas devidamente pagas e aptos a participarem do circuito competitivo e de eventos de âmbito nacional.

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A partir destes dados, identifica-se outra informação destoante, pois, a partir do momento em que o praticante se filia à federação estadual, já deveria ser cadastrado na plataforma Zempo, para que sejam computados os critérios de graduação (conforme o regulamento nacional) e participação de eventos. Entretanto, esse controle não é rigoroso nem é cobrado pelas federações, por motivos desconhecidos.

“Esses achados são a ponta do iceberg da falta de organização de um esporte muito conhecido e popular no Brasil e o principal responsável pelas medalhas olímpicas. Modalidade que, comprovadamente, é uma das mais contempladas com recursos públicos vindos da Secretaria Especial do Esporte ou diretamente do Comitê Olímpico do Brasil (COB).”

Para Rafael Borges, o número de filiados às entidades nacionais deve ser preciso e demonstrar claramente os registros e seus microdados, justamente por orientar planejamento, patrocinadores e recursos públicos e privados envolvidos no esporte.

Irmãs Yuri e Saki fazendo demonstração de kata © IJF

Considerando os 2,5 milhões de praticantes e os 110 mil filiados declarados na plataforma pela CBJ, permitimo-nos breves reflexões sobre o judô brasileiro:

  • A quantidade de competidores efetivos encontrada, de aproximadamente 30 mil, é apenas 1,2% do todo, quando considerados os 2,5 milhões. Mesmo os 110 mil registros seriam equivalentes a apenas 4,4%, indicando que 95,6% dos praticantes de judô no Brasil estão desassistidos e ignorados na forma e no conteúdo de sua prática.
  • Professores registrados e reconhecidos pela CBJ, na condição de “técnicos”, são de 3.252. Um número muito pequeno diante da realidade do judô brasileiro, já que somente em São Paulo existem cerca de 2.000 técnicos devidamente credenciados. Da mesma forma, isso permite inferir que a esmagadora maioria dos professores estão desassistidos pela entidade maior do esporte, permitindo que a qualidade do ensino da modalidade esteja comprometida.

Comitiva do Instituto Kodokan do Brasil (IKB) no museu do Instituto Kodokan de Tóquio em dezembro de 2018: Roberto Mitio Harada (IKB); Clóvis Cavenaghi (SESI-SP); Rafael Borges (IKB) e, Naoki Murata (1949 -2020) curador do museu e da biblioteca do Kodokan, pesquisador na área de história do judô, uma referência mundial © Arquivo

O professor Rafael Borges estima que existam entre 19 mil e 33 mil “professores” de judô no Brasil, para que toda a população estimada de praticantes possa ser assistida.

“Os professores parecem ser um elo essencial entre a CBJ e os praticantes, pois além da transmissão do ensino, são os responsáveis por solicitar o pagamento de anuidade de seus alunos/atletas em favor das federações e, posteriormente, registrá-los na plataforma Zempo, desempenhando o papel de “arrecadador” diante de seus alunos e/ou responsáveis. ”

Em seizá, crianças japonesas aguardam o rei final © Arquivo

Esses achados são a ponta do iceberg da falta de organização de um esporte muito conhecido e popular no Brasil e o principal responsável pelas medalhas olímpicas. Modalidade que, comprovadamente, é uma das mais contempladas com recursos públicos vindos da Secretaria Especial do Esporte ou diretamente do Comitê Olímpico do Brasil (COB).

Talvez essa falta de coordenação nacional – e de propostas pedagógicas robustas que atendam às necessidades de todos, desde os iniciantes até os competidores – seja um dos principais fatores para a carência de conhecimento e orientação da comunidade judoística, que acaba por levar à redução do número de praticantes e de novos filiados federados efetivos.

Muito provavelmente, os problemas que afligem os dirigentes europeus diferem daquilo que acontece no Japão. Já no Brasil, um País com fortes contrastes socioculturais, a falta de políticas severas e pragmáticas voltadas para os Estados e a base da modalidade impede que, no exato momento em que as grandes potências se veem mergulhadas em crises sem precedentes, apesar de todos os desmandos, o judô brasileiro se imponha definitivamente como potência da modalidade.