A infância e a adolescência de Jigoro Kano

Jigoro Kano com 11anos à direita © Instituto Kodokan

O pai, Jirosaku Mareshiba Kano, cuidou pessoalmente de sua educação e lançou as bases de sua cultura, apresentando-o ao estudo dos clássicos da literatura e da caligrafia chinesas.

Por Marco Antônio Domingues
13 de março de 2024 / Curitiba (PR)

Jigoro Kano nasceu em 28 de outubro de 1860, na vila de Mikage, distrito regional de Hyogo, na região de Kansai, na ilha de Honsu, cuja capital é Kobe. Aquela região, voltada para o mar interior do Japão, abriga cinco aldeias (vilas) produtoras de saquê: Imazu, Nishinomiyao, Uozaki, Mikage e Nishi.

Terceiro filho de Jirosaku Mareshiba Kano, recebeu o nome individual (prenome) de infância1 de Shinnosuke, herdando o sobrenome do pai conforme o costume, mas Kano foi adquirido de seus ancestrais maternos (nome de família). A mãe de Jigoro Kano, Sadako Kano, era a filha mais velha de uma família bastante rica, de destiladores e produtores do famoso saquê Kikumasamune que não tinham filhos homens que pudessem sucedê-los nos negócios e, portanto, dar continuidade ao nome da família.

Antes de se casar com Sadako Kano, Jirosaku Mareshiba Kano permitiu tornar-se membro adotivo da casa Kano e adquirir o sobrenome da noiva para transmiti-lo às gerações futuras, embora descendesse de uma família cujas origens remontam ao início da história do Japão e cujos ancestrais incluíam numerosos sacerdotes xintoístas, mestres budistas e estudiosos confucionistas.

Além de seu envolvimento nos negócios da família, Jirosaku Mareshiba Kano era dono de uma empresa de navegação. Seus interesses comerciais muitas vezes o levavam a viagens a Osaka e Tóquio, onde possuía uma casa. Jigoro Kano e seus irmãos (três meninos e duas meninas), todos mais velhos, viam pouco o pai, que constantemente estava ocupado viajando a negócios.

Shihan Kano aos 20 anos à direita © Instituto Kodokan

Sadako Kano impôs uma disciplina tão rígida na criação dos filhos que Jigoro Kano, já adulto, falava dela como uma boa mãe, mas que não permitia nenhum desvio da educação imposta. Apesar disso, sendo Jigoro Kano o mais novo, ele teve uma infância feliz sob seus cuidados.  Em 1869, quando Jigoro Kano tinha 9 anos, sua mãe adoeceu e, pouco tempo depois, faleceu.

No início da década de 1870, o pai de Jigoro Kano foi nomeado administrador e oficial do governo japonês, com a tarefa de acelerar o processo de modernização do Japão.

No mesmo ano, acompanhado de seu irmão mais velho, Kensaku Kano, Jigoro Kano mudou-se para a distante Tóquio, viagem que marcou a sua vida.

Viúvo, Jirosaku Mareshiba Kano cuidou pessoalmente de sua educação e lançou as bases de sua cultura, apresentando-o ao estudo dos clássicos da literatura e da caligrafia chinesas.

Em 1871, Jigoro Kano, foi matriculado no restrito colégio Seitatsu Shojuku, cujo diretor era Keido Okata, conhecido na época por sua cultura, o que influenciou positivamente a formação do futuro fundador do Judô Kodokan. Ele adorava repetir ao jovem Jigoro Kano que, mesmo que a educação clássica fosse inestimável, ele tinha de familiarizar-se com a cultura ocidental. Além disso, Jigoro Kano era um aluno promissor que poderia estudar ciências, geralmente consideradas pertencentes ao conhecimento do mundo ocidental e associadas às línguas europeias. Foi por esta razão que seu pai decidiu que ele estudaria inglês, uma decisão incomum, porém sábia, para aquela época, na escola Shibei Mitsukuri. Em 1873, matriculou-se na escola Ikuei Gijuku, onde todos os cursos eram ministrados em inglês ou alemão por professores ocidentais.  

Jigoro Kano e amigos estudantes da Universidade de Tóquio – sentado e segundo à direita © Instituto Kodokan

Jigoro Kano acreditou que seria muito divertido morar com outras crianças, mas assim que chegou todas as suas ilusões desapareceram. No primeiro dia lhe mostraram o dormitório que dividiria com cinco meninos mais velhos do que ele. A luz era fraca, a atmosfera não era muito hospitaleira e o chão rangia sob os pés. Os colegas de quarto pediram a Jigoro Kano que se identificasse rapidamente, oportunidade na qual ele se curvou e tentou se apresentar (nervosamente), motivo pelo qual os outros meninos o insultaram. Ele imediatamente entendeu que, como era mais novo, estava sendo subjugado e considerado não digno da atenção dos mais velhos. O seu primeiro instinto foi de rebelar-se contra este tratamento cruel e arbitrário, mas rapidamente percebeu que, se quisesse permanecer na escola, teria deencontrar uma forma de conviver com aquele tipo de mentalidade. A vida no internato era difícil e cheia de solidão, principalmente para um menino que já havia perdido a mãe e tinha um pai muito ocupado com o trabalho.

Com conhecimentos básicos de inglês, Jigoro Kano dedicou-se aos estudos e progrediu continuamente. Certo dia, ele se preparava para a aula quando um dos meninos, mais velho, apareceu e pediu-lhe que o seguisse para desafiá-lo para uma luta de sumô2. Jigoro Kano tentou recusar o convite, mas sem sucesso. O menino mais velho o forçou a cair e o prendeu no chão. Enquanto ainda tentava recuperar o fôlego, o menino o insultou por não ter colocado mais ânimo na luta e foi embora. Oprimido por uma fúria interna e um amargo sentimento de frustração, Jigoro Kano começou a chorar. Ele era fisicamente inferior aos meninos mais velhos, incapaz de se defender numa briga e agora desesperadamente inseguro sobre por quanto tempo seria capaz de lidar com tais situações.

Nos meses seguintes, Jigoro Kano foi incansavelmente intimidado, geralmente por alunos mais velhos, mas às vezes até por seus colegas de classe, alguns dos quais se ressentiam pelo fato dele ser um aluno exemplar e muitas vezes obter as notas mais altas.

Em 1874 matriculou-se na Escola de Línguas Estrangeiras de Tóquio (Tokyo School of Foreign Languages), cujo diretor, Shosaku Hida, era amigo de seu pai e funcionário do Ministério da Educação japonês.  Ele morava numa casa perto da escola e, autorizado pelo pai, Jigoro Kano mudou-se para lá. Foi um momento feliz para o menino, pois ele não precisaria mais se submeter ao bullying dos alunos mais velhos.

Saquê produzido pela família Kano © Instituto Kodokan

Após diversas dificuldades de estudo, aprofundou tanto seu conhecimento na língua inglesa que escreveu seu diário e notas técnicas sobre o Budô nesta língua. Um dos motivos dessa decisão foi guardar seus pensamentos para si, para evitar que alguém tomasse posse de seus apontamentos, visto que naquela época existia intensa rivalidade entre as diversas escolas de jujutsu3. A utilização da língua inglesa ajuda-o a encontrar a ligação entre a tradição japonesa e a mentalidade ocidental, de forma a poder empreender novas ideologias, novos métodos e técnicas de formação.

Em 1877 ingressou na escola Kaisei, que com o tempo se tornou a Universidade Imperial Teikoku de Tóquio, atual Universidade de Tóquio. Portanto, Jigoro Kano teve a honra de ser um dos membros da mais alta instituição educacional nacional.

Lutar para defender-se

Literatura correlata revela que no mesmo ano Jigoro Kano ingressou na escola Tenshin Shinyo, onde estudou com o professor Hachinosuke Fukuda (1829-1880), ou seja, recebeu aulas de jujutsu pela primeira vez.

Ele escolheu a ciência política, a filosofia e a literatura como suas disciplinas principais, mas reservou sua predileção à astronomia.  Mesmo nesta escola havia uma tradição de maltratar e abusar dos alunos mais novos. Foi assim que Jigoro Kano encarou mais uma vez a necessidade de se defender.

Durante esse tempo, um homem chamado Baisei Naka, membro da guarda do xogum, frequentava com assiduidade a casa onde Jigoro Kano morava. Um dia ele mencionou que o jujutsu era uma excelente forma de treinamento físico e fez uma breve demonstração de algumas técnicas na presença de Jigoro Kano e disse que esta arte marcial permitiria que qualquer pessoa com pouca força física subjugasse adversários maiores e mais fortes.

Kano sensei já adulto © Instituto Kodokan

Para Jigoro Kano foi uma revelação excepcional e ele decidiu pedir ao Baisei Naka que lhe ensinasse essa luta. A resposta foi nada encorajadora. Ele ficou surpreso que um jovem promissor como Jigoro Kano pudesse interessar-se por esta disciplina, mesmo tendo boas lembranças dela. Para ele, o jujutsu pertencia à era samurai, por isso considerou o pedido de Jigoro Kano uma estupidez, afirmando que sua prática seria uma perda de tempo.

O entusiasmo de Jigoro Kano diminuiu seriamente, mas ele pensou que seria tolice desistir de tal empreitada caso ela realmente lhe pudesse dar a oportunidade de se defender. Igualmente, aprendeu os rudimentos do jujutsu com Ryuji Karagiri (porteiro da casa de seu pai), com Heinosuke Yagi e com Genshiro Imai.

Certo dia, um menino em busca de briga e mais alto que Jigoro Kano o jogou com uma técnica de jujutsu enquanto zombava dele. Até mesmo os transeuntes riam enquanto o jovem Jigoro Kano ardia de vergonha. Naquela época, as escolas no Japão não ofereciam atividades atléticas organizadas e, portanto, Jigoro Kano tinha poucas oportunidades de se desenvolver fisicamente. Entretanto, ele sentia uma necessidade desesperada de superar suas desvantagens físicas, pois os maus tratos sofridos, impostos por seus companheiros, se tornavam insuportáveis. Então, um dia ele pediu permissão ao pai para aprender jujutsu. O pai ficou surpreso com o pedido e perguntou o motivo, mas o jovem Jigoro Kano, envergonhado dos maus tratos que havia sofrido na escola, simplesmente disse que tinha ouvido falar que o jujutsu poderia dar a um homem menor o poder de vencer os maiores.

“Conheço algumas pessoas que são especialistas em jujutsu”, disse o pai. “Baisei Naka é um deles.” Jigoro Kano explicou que já havia falado com esse especialista, que se recusou a ensiná-lo, assim como Genshiro Imai. O pai riu. “Ninguém hoje tem mais tempo para artes marciais tradicionais. Afinal, o que você sabe sobre isso? Você conhece alguma coisa da história do jujutsu?” “Absolutamente nada”, admitiu o filho. O pai contou-lhe a história do jujutsu, falou sobre as referências a esta arte marcial que se encontravam em manuscritos antigos, sobre a origem idêntica do sumô. Disse que o jujutsu havia sido adotado pelos samurais para enfrentar o combate desarmado ou armado, que havia centenas de escolas praticando diferentes estilos e que as técnicas desenvolvidas eram mantidas em segredo, para serem usadas com máximo efeito em combate real.

O jovem Jigoro Kano ficou fascinado com o discurso do pai e implorou-lhe que o ajudasse a encontrar alguém disposto a lhe ensinar essas técnicas. O pai foi inflexível: “A era do samurai já passou! Escolha um esporte moderno se quiser fazer exercícios físicos. Jigoro Kano ficou desapontado, mas, determinado,murmurou para si mesmo: “Ainda vou encontrar um professor de jujutsu.

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Jigoro Kano teve a infância e a adolescência repletas de aprendizados e experiências significativas que o levaram a conceber o judô, como uma prática esportiva, com um conteúdo pedagógico e formativo muito mais amplo e abrangente do que qualquer outra modalidade.

Graças à vivência e à visão holística de Jigoro Kano na juventudetemos no judô uma prática esportiva com atributos de transitam espontaneamente pela educação e por valores imprescindíveis como o caráter, os princípios morais e a ética.

Esporte e lição de vida

Um dos nove princípios do judô diz que o judoca é o que possui inteligência para compreender aquilo que lhe ensinam e paciência para ensinar o que aprendeu aos seus semelhantes, encontra-se vigente em número, gênero e grau, portanto, vejamos a explanação do professor kodansha e historiador Stanley Virgílio.

“À inteligência que deve ter o judoca para compreender aquilo que lhe ensinam acrescentamos a perseverança e a humildade. Perseverança, porque nem sempre possuímos a facilidade do aprendizado rápido e justo e a demora poderá levar-nos a abandonar ou negligenciar conhecimentos que nos farão falta. Um pouco de perseverança possibilitará sempre o seu aprendizado. Humildade, porque sem ela podemos achar que somos sábios e do alto da nossa suficiência não desceremos para aprender aquilo que não sabemos. No transcorrer da vida, há uma seleção natural que escolhe os que transmitirão os ensinamentos para as gerações futuras. Assim é no judô. Aquele que teve a paciência para perseverar durante anos, acumulando conhecimentos e experiências, certamente terá em grande dose a paciência necessária para o ensinar o que aprendeu, contribuindo assim para que a nossa arte caminhe para o futuro.”

A título de arremate, nós, seres humanos passamos por quatro fases na vida: infância (do nascimento aos 12 anos), adolescência (entre os 12 e 20 anos), adulta (entre os 20 e 65) e velhice (dos 65 anos em diante). Essas fases nos revelam que Jigoro Kano foi um ser humano atemporal.

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[1] A infância é a etapa inicial da vida compreendida entre o nascimento e os 12 anos de vida. Para alguns, ou pouco mais.

2 Antiga luta japonesa de ritual elaborado, mais longo que o próprio combate em si, praticada por adversários excepcionalmente grandes, que utilizam técnicas de preensão, cada um buscando projetar o outro para o chão ou para fora de um espaço bastante limitado.

3 O termo jujutsu é uma palavra japonesa que deriva da combinação da palavra “ju” que designa suavidade, adaptabilidade e flexibilidade, com a palavra “jutsu” que significa arte. Dessa forma, o jujutsu é a arte da flexibilidade e da adaptação e, entre as artes marciais existentes, é uma das mais antigas.

Referências bibliográficas:
BULL, Wagner. Kodokan Judô. São Paulo, Cultrix, 2008.
FEDERAÇÃO PAULISTA DE JUDÔ. Caderno Técnico de História e Filosofia do Judô. São Paulo, 1999.
CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE JUDÔ. http://www.cbj.com.br/historia_do_judo/. Acesso em: janeiro de 2024.
LIGA DE JUDÔ PAULISTA / LIGA INTERNACIONAL DE JUDÔ YUDANSHAKAI-KODANSHAKAI. Curso de História, Filosofia, Ética, Estética e Fundamentos Técnicos Básicos do Judô Tradicional Kodokan. São Paulo, 2024.
LEX, Sérgio Barrocas. Judô: Aprender e Gostar é Só Começar. Santos, Editora Bueno, 2017.
LOWRY, Dave. O Dojô e Seus Significados. São Paulo, Pensamento, 2012.
KANO, Jigoro. Kodokan Judo. Tokyo, Kodansha Internacional, 1994.
Jigoro. Energia Mental e Física. São Paulo, Pensamento, 2012.
UCHIDA, R; MOTTA, R. Uruashi: O Espírito do Judô. São Paulo, Editora Évora, 2013.
VIRGÍLIO, Stanlei. A Arte do Judô. Porto Alegre: Editora Rígel, 1994.