Jigoro Kano e o beisebol: A iniciação esportiva escolar do criador do judô

O fundador do judô mostrou afinidade com a prática desportiva desde cedo, principalmente modalidades de origem ocidental, incluindo natação e corrida  

Por Rafael de Camargo Penteado Borges
8 de março de 2022 / Curitiba (PR)

Jigoro Kano (28 de outubro de 1860 – 4 de maio de 1938), renomado professor japonês, mundialmente conhecido por ser o fundador do judô, considerado o pai da educação física no Japão, foi o principal ativista para entrada do Japão no movimento olímpico, tornando-se membro do Comitê Olímpico Internacional em 1909.

Além do judô, Jigoro Kano era um ávido educador em outras disciplinas de educação física, como natação, corrida de longa distância, tênis e futebol. Kano acreditava que a educação física não só servia para fortalecer o físico, mas também aumentava a moralidade em relação a si mesmo e aos outros e permitia que as pessoas continuassem jovens e vivessem felizes se tais práticas fossem continuadas ao longo da vida.

Horace Wilson (1843-1927), um norte-americano que ensinou beisebol a alunos na Kaisei School © Yakyu Dendo

A relação de Kano com os esportes ocidentais começou ainda na escola. Em relação ao beisebol, seu primeiro contato ocorreu em 1875, quando Kano, ainda com 14 anos de idade, ingressou na Kaisei School, posteriormente denominada Universidade Imperial de Tóquio e atualmente Universidade de Tóquio. Foi onde o professor norte-americano Horace Wilson, contratado pelo governo japonês como consultor estrangeiro para auxiliar na modernização do sistema educacional japonês, ingressou como docente em 1872 e iniciou o ensino do beisebol para estudantes japoneses, dentre eles Jigoro Kano.

Kano manteve-se praticando beisebol, assim como outros esportes ocidentais, os quais estavam sendo difundidos no Japão como parte das novas políticas de relações internacionais, até sua graduação na faculdade, em 1881, aos 21 anos de idade. Manuscritos de Kano contêm frases como: “Eu tentei vários exercícios. Fiz um pouco de ginástica. Também remei um barco. A melhor coisa que fiz foi beisebol”. Sua atividade desportiva demonstra sua afinidade com esportes desde cedo, além de sua proximidade com a cultura ocidental, principalmente norte-americana e inglesa.

Jigoro Kano a direita, aos 11 anos de idade © Kodokan

A afinidade com o beisebol motivou Kano a fundar o considerado primeiro clube de beisebol escolar do Japão em 1878, o Kasei Baseball Club. Isso permite inferir que era uma das atividades que Kano mais gostava de praticar quando jovem. Em outro manuscrito Kano afirma: “Seria estranho dizer que eu era um jogador de beisebol, mas naquela época eu era um arremessador (pitcher)”.

Ainda quando jovem, Kano tinha obviamente uma afinidade grande com o jujutsu, porém, por ser uma atividade não recreativa e com uma carga cultural muito forte baseada em sua hierarquia e rigidez, sua preferência recaiu sobre esportes ocidentais, como o beisebol, com características mais recreativas e coletivas. O mesmo ocorreu com outros estudantes da época.

Aos 17 anos (1877), Kano ingressou na Universidade Imperial de Tóquio, no departamento de literatura, e iniciou a prática de jujutsu (Tenjin Shin’yō-ryū) sob orientação de Fukuda Hachinosuke. A busca pela prática do jujutsu foi motivada pelo fato de querer melhorar sua autonomia e defender-se de um ambiente social no qual sofria bulling. Isso começara em 1883 (entre 12 a 13 anos de idade), quando ainda estudava na Ikuei Gijuku, pelo fato de ter uma estatura menor que a média para a idade e, consequentemente, um porte físico franzino.

Nesse sentido, há uma passagem citada por Watson que evidência a importância social do beisebol, o qual permitiu que Kano em 1881, já graduado na universidade, conhecesse um de seus mestres de jujutsu do estilo kito-ryu, o professor Masaaki Motoyama, pai de seu colega e, um dos rebatedores e receptores (catcher) do time de beisebol da universidade, Masahisa Motoyama. Devido à idade avançada, Masaaki Motoyama encarregou-se de apresentá-lo ao conhecido professor Iikubo Tsunetoshi, criador do estilo kito-ryu.

Idaten (taiga drama) analisa a história do esporte japonês desde as Olimpíadas de Estocolmo (1912) até as Olimpíadas de Tóquio (1964), em seis episódios que conta com legendas em inglês e narração do artista japonês nascido nos Estados Unidos Patrick Harlan © Japan Times

Numa época em que o Japão sofria dificuldades e grandes transformações sociais, os esportes ocidentais – como canoagem, atletismo, beisebol, dentre outros – eram vistos como jogos e atividades improdutivas, que não promoviam a riqueza e o desenvolvimento nacional. Portanto, eram frequentemente negligenciados. Por outro lado, mesmo com certa aversão por parte da sociedade japonesa, essas modalidades eram praticadas por alguns estudantes que, em geral, não sentiam afinidade pelo exercício físico de padrão japonês da época. Ressalte-se que as atividades físicas japonesas estão massivamente relacionadas ao Budô, são praticadas individualmente e sem a conotação de jogo. Kano foi um esportista versátil, pioneiro na difusão da educação física e do esporte para os japoneses ao longo de sua vida, conforme documentado na série Idaden.

“Por meio do judô, Jigoro Kano conseguiu sintetizar de forma simples a educação integral do indivíduo, sendo um meio de transmitir a essência da cultura japonesa e a saúde física e mental.”

Quando Kano se tornou diretor da Escola Normal Superior de Tóquio (predecessora da Universidade de Tsukuba) em 1893, com 33 anos, mudou a gestão escolar de estilo militar e fez várias reformas curriculares, enquanto colidia frontalmente com o ministro da Educação da época. Uma das grandes mudanças promovidas por Kano foi a promoção da prática de exercícios físicos. Todos os alunos foram autorizados a participar de atividades dos clubes atléticos durante uma hora por dia, após a escola, e a participar de competições de natação e de corrida. Não havia precedente em nenhuma escola no Japão. Essa cultura esportiva dentro da escola, provavelmente, foi inspirada no longo processo de ocidentalização vivenciada por Kano na sua época de estudante.

A popularidade do beisebol entre os japoneses cresceu lentamente, devido ao empenho de Hiroshi Hiraoka, engenheiro ferroviário japonês que estudou nos Estados Unidos © Wikimedia

Os clubes atléticos, incluindo o de judô (modalidade fundada por Kano em 1882), foram se formando, registrando-se cerca de 15, como os de ginástica, de tênis de grama, de beisebol, de futebol, de remo, de bicicleta e de rugby. Os alunos formados se espalharam por escolas de todo o país e começaram a divulgar o movimento esportivo e da educação física.

Kano recomendou que as pessoas criassem o hábito de se exercitar como hobby, para que movimentassem o corpo, além de diversos esportes, independentemente do local ou do equipamento. O judô e o kendô também foram bem incentivados, assim como modalidades ao ar livre, como atletismo e natação.

Embora Kano recomendasse a prática de esportes ao ar livre, seus manuscritos indicam que ele havia mudado de opinião sobre o beisebol, que passou ser excluído.

Um monumento em forma de mão segurando uma bola de beisebol foi construído em um canto do terreno próximo do Palácio Imperial. O nome do monumento está gravado com o local de nascimento do beisebol japonês © University of Tokyo

Acredita-se que essa mudança de opinião foi influenciada pelos artigos denominados Beisebol e seus Venenos, ou “teoria prejudicial do beisebol”, publicados em 1911 (Meiji 44). Trata-se de uma série de entrevistas feitas pelo jornal Tokyo Asahi Shimbun com diretores de escolas como Inazo Nitobe (Ichitaka) e Maresuke Nogi (Gakushuin). Nessa época a popularidade e a prosperidade do beisebol foram prejudicadas, pois a modalidade era considerada uma cultura ocidental burguesa. Essa imagem prejudicial foi moldada em parte pelo fato de o beisebol não estar alinhado com a cultura oriental, incluindo o Bushidô.

O jogo em si, em suas ações estratégicas e táticas, induzem os jogadores e serem agressivos e desrespeitosos com seus adversários, contribuindo pouco para o preparo físico, parecendo ser mais um passatempo, quando comparado com as demais modalidades. É o que defende o artigo de Setsuro, no qual ressalta o importante contexto sociocultural da época, quando os países que enviaram tropas para as guerras sino-japonesa (1894 – 1894) e russo-japonesa (1904 – 1905) e a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) estavam sob pressão para aumentar a força física dos soldados e começaram a exigir isso da educação física escolar, mais associada a outras modalidades e não no beisebol.

Jigoro Kano na cerimônia de abertura dos 5º Jogos Olímpicos realizados em Estocolmo, na Suécia (1912), competição que marcou a primeira aparição do Japão nos jogos Olímpicos © Instituto Kodokan

Nesse momento e contexto, o futebol foi repentinamente percebido como rival do beisebol. O futebol foi introduzido pela Marinha Real Inglesa na mesma época que o beisebol, no 6º ano da era Meiji (1872), mas pouco se desenvolveu e sua popularidade não era comparável à do beisebol. Porém, em 1911, a pedido de Jigoro Kano, então presidente da Associação Desportiva do Japão, os professores da Escola Normal Superior de Tóquio lideraram o estabelecimento da Associação de Futebol do Japão.

O embaixador britânico tornou-se presidente honorário desta associação, ganhando assim notoriedade. O beisebol e o futebol ficaram à mercê da Aliança Anglo-Japonesa, sendo influenciados pelas políticas internacionais e pela popularidade nacional, o que impulsionou o futebol neste momento da história. O beisebol ganhou maior notoriedade a partir de 1920 com a formação de times profissionais e em 1936 com a Nihon Yakyū Renmei, Japan Baseball League em inglês, que elevou o beisebol japonês a um novo horizonte. De qualquer forma, Kano tem uma profunda ligação não apenas com o judô, mas também com o beisebol e futebol no Japão.

A pedido do Barão Pierre de Cubertin, em 1909 Kano tornou-se o primeiro desportista do Japão membro do Comitê Olímpico Internacional (COI), motivado pelo propósito de que a educação física é a única forma de fazer os jovens viverem bem sem enfraquecê-los.

Kano articulou politicamente para que em 1940 Tóquio fosse a sede dos Jogos Olímpicos, atendendo a um grande sonho seu. “Quero fazer as Olimpíadas para mostrar ao mundo o espírito do Japão”, na qual provavelmente o judô poderia ser uma modalidade demonstrativa. Entretanto, Kano morreu em 1938, quando retornava de uma viagem ao Cairo, Egito, e, devido à Segunda Guerra Mundial, os Jogos Olímpicos de 1940 não foram realizados. Apenas em 1964 Tóquio seria a sede, quando o judô de fato foi apresentado a primeira vez ao mundo olímpico.

Pôster alusivo a Olímpiada de 1912 © Arquivo

O beisebol já havia sido apresentado em 1912 nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, e em 1936, 1956, 1964, 1984 e 1988; porém entrou efetivamente nos Jogos Olímpicos em 1992, em Barcelona, e o softball em 1996, nos Jogos de Atlanta.

Jigoro Kano é uma grande personalidade que traçou os trilhos da educação física e esportes no Japão, provavelmente sob influência de sua formação escolar ocidentalizada, decorrente de todo o contexto imposto pela restauração Meiji. O judô continua sendo sua principal obra-prima, na qual conseguiu sintetizar de forma simples a educação integral do indivíduo. Trata-se de uma forma de transmitir a essência da cultura japonesa e a saúde física e mental.

Professor Rafael de Camargo Penteado Borges é professor da Associação Borges de Judô, ni-dan (2º dan) pela Confederação Brasileira de Judô e sho-dan (1º dan) de jiu-jitsu pela Confederação Brasileira de Jiu-jitsu e san-dan (3º dan) pela Federação Internacional de Jiu-jitsu (JJIF). Graduado em Licenciatura e Bacharelado em Educação Física; mestre e doutor em fisiopatologia médica pela NICAMP, especialista pela Universidade Gama Filho, nutricionista graduado pela universidade Metrocamp – rafaelcpborges@gmail.com

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