O processo de institucionalização e desenvolvimento do karatê tradicional no Brasil

Shihans Tasuke Watanabe e Gilberto Gaertner © Budopress

Em 1990 a CBKT filiou-se à ITKF, do shihan Hidetaka Nishiyama, juu-dan (10º dan), hoje a organização está presente em mais de 60 países de quatro continentes

Karatê Tradicional
14 de abril de 2021
Por PAULO PINTO
Curitiba (PR)

No ano de 1987, na sede da Confederação Brasileira de Pugilismo (CBP), no Rio de Janeiro, várias federações estaduais reuniram-se em assembleia geral para fundar a Confederação Brasileira de Karatê (CBK) e eleger sua primeira diretoria provisória.

Visita de lendário Masatoshi Nakayama ao Brasil em 1975. Na foto aparecem alguns dos maiores nomes do karatê do Brasil como Tanaka, Uriu, Inoki, Watanabe, Monassa, Caribé, Kawamura, Sagara, Takeushi e Góis © Arquivo

Desde 1969, quando foi realizado o primeiro campeonato brasileiro, no Rio de Janeiro, a modalidade passara a fazer parte da organização institucional da Confederação Brasileira de Pugilismo.

Essa arte marcial japonesa, entretanto, já tinha desembarcado no Brasil há quase 80 anos. Segundo relatos, o karatê chegou por aqui em 1908, a bordo do navio Kassato Maru. Cresceu aos poucos dentro do território nacional, praticado sectariamente pelos imigrantes japoneses.

Shihan Hidetaka Nishiyama, juu-dan (10º dan) fundador da ITKF © Arquivo

Com a chegada de novos mestres e a abertura de academias, a partir de 1945, começou a propagar-se e popularizar-se entre os brasileiros. No ano de 1972, o nipo-brasileiro Luís Tasuke Watanabe surpreendeu o mundo da arte das mãos vazias, ao conquistar o título máximo do karatê no Campeonato Mundial em Paris após oito ippons consecutivos, quando a modalidade ainda competia no formato absoluto, ou seja, numa única categoria de peso.

Luiz Alberto Küster, secretário geral da ITKF © Arquivo

A partir desse feito, o karatê brasileiro adquiriu projeção, reconhecimento e respeito mundo afora. O número de praticantes e academias passou a crescer em ritmo vertiginoso. O karatê merecia vida própria e institucional, compatível com a sua envergadura em nosso País. Com a criação da Confederação Brasileira de Karatê (CBK), a modalidade deixou de ser um departamento da confederação de pugilismo; ganhava então a sua própria entidade nacional.

Oswaldo Mendonça Júnior, ex-presidente da CBKT © Arquivo

Para a diretoria da CBK foram eleitos como presidente João Fauzi Abdala (Bahia) e vice-presidente o lendário Hugo Mendes Nakamura (Goiás).

Não demorou um ano, porém, para que as divergências entre o karatê esportivo e o karatê tradicional, já efervescentes mundo afora desde a criação da World Union of Karate-Do Organizations (Wuko), irrompessem também aqui, causando uma cisão abrupta na recém-formada CBK.

Senseis Sagara, Tanaka, Uriu, Inoki, Watanabe e Kawamura, precursores do karatê em 1975 trouxeram o mestre Masatoshi Nakayama pela primeira vez ao Brasil © Arquivo

Karatê tradicional se impõe

Os mestres japoneses Yasutaka Tanaka, Hiroyasu Inoki, Yochizo Machida, Yasuyuki Sasaki, Takuo Arai e Tasuke Watanabe formavam um bloco uníssono, poderoso, de apoio à linha mundial do karatê tradicional, idealizada, liderada e praticada pelo mestre Hidetaka Nishiyama.

Hugo Mendes Nakamura, um dos pioneiros na gestão esportiva brasileira fundou e dirigiu diversas modalidades de lutas © Arquivo

O alinhamento da CBK à Wuko e ao Comitê Olímpico Internacional e a submissão à suas exigências para alterar regras milenares desagradava o bloco. Nishiyama, líder internacional dos tradicionalistas, dizia: “Nós só participaremos do Movimento Olímpico se for uma boa coisa para o karatê; jamais desvirtuaremos o karatê para servir ao Movimento Olímpico”.

Seleção brasileira no Campeonato Mundial de Lima 1990, na comissão técnica gigantes como Inoki, Machida, Sasaki e Watanabe © Arquivo

Em decorrência dessa divergência, em 1988, um ano depois da fundação da CBK, foi fundada também no Rio de Janeiro a Confederação Brasileira de Karatê Tradicional (CBKT). Sensei Tanaka, com a ajuda de Hugo Nakamura, conseguiu convencer o professor doutor Manoel Tubino, faixa preta de karatê, da importância de existir um karatê que mantivesse firme seus princípios e raízes históricas. Tubino era presidente do Conselho Nacional de Desportos (CND) do Ministério de Esporte e Turismo e ele apoiou a criação da CBKT. Foi além: como presidente do CND, emitiu o reconhecimento oficial da instituição como mantenedora e divulgadora do karatê tradicional no Brasil.

Shihan Hiroyasu Inoki uma das maiores referências técnicas do karatê-dô tradicional brasileiro © Budopress

O processo de criação, formação e fundação das duas confederações – karatê esportivo (CBK) e karatê tradicional (CBKT) – teve um elemento comum, visionário, e há que reconhecer a sua importância histórica: o professor Hugo Mendes Nakamura.

Shihan Yoshizo Machida © Arquivo

“Conheci-o em 1989”, relata Luiz Alberto Küster, atual secretário geral da Federação Internacional de Karatê Tradicional. “O professor Nakamura era um homem prático, idealista, bem relacionado e com uma visão de futuro surpreendente. No dia em que fomos apresentados, carregava vários cadernos de capa preta sob o seu braço. Eram livros de assembleias gerais de fundação de várias organizações esportivas: Confederação Brasileira de Lutas, Karatê Tradicional, Luta Greco-Romana. Falava profusamente. Dirigia o Instituto Hugo Nakamura de Artes Marciais e era proprietário de várias academias. Produzia camisetas estampadas com motivos marciais e as vendia em quiosques. Ligado ao ambiente universitário, já conhecia o potencial da internet e profetizava o seu uso para potencializar vendas.”

Yasutaka Tanaka com Ugo Arrigoni Neto, seu aluno mais antigo que hoje é shihan 8º dan © Budopress

Mãos à obra

Um ano após a sua fundação, a CBKT não tinha conseguido sair do papel, continua Küster. “O momento reclamava uma instituição forte e viva na defesa dos seus interesses e ativa na divulgação do karatê tradicional. Foi então que sensei Tanaka, sentindo a importância de dar vida à instituição, ligou para dois amigos em Goiás, Hugo Nakamura e Oswaldo Mendonça Júnior, e pediu ajuda. Oswaldão, como era conhecido, havia conquistado o respeito da comunidade do karatê após ganhar mais de sete vezes o campeonato goiano, além de vários títulos internacionais em kata e kumitê.

Takuo Arai e Luiz Alberto Küster no 14º Simpósio Internacional de Educação Física e Lazer de Curitiba 2018© Arquivo

Foi assim que, na sede da academia do sensei Oswaldo, situada na Rua 87 do Setor Sul, em Goiânia, o professor Hugo Nakamura lavrou a ata da assembleia geral da CBKT, que com apoio incondicional das federações estaduais elegeu sua segunda diretoria: Luiz Alberto Küster como presidente, Oswaldo Mendonça Júnior como secretário geral e Yasutaka Tanaka como diretor técnico. Sua missão: trazer a Confederação Brasileira de Karatê Tradicional à vida, fomentando ações de divulgação, promovendo torneios, cursos de arbitragem e desenvolvimento, e principalmente, estimulando o crescimento das federações estaduais.

Gilberto Gaertner, Richard Jorgensen, Eligio Contarelli, Yoshizo Machida, Yasutaka Tanaka e Tasuke Watanabe no Masters Course 2017 © Budopress

Para sair do papel e iniciar atividades reais, a CBKT precisava de recursos. Não os havia no ministério e naquela época as federações esportivas, em geral, mal conseguiam sustentar-se. Küster relata que foi a uma gráfica e mandou imprimir 5 mil diplomas CBKT. E, assim, foi institucionalizado o reconhecimento de grau individualizado, com a assinatura do examinador, do diretor técnico e do presidente da entidade. Juntamente com o diploma era emitida uma carteira de registro. Foi um sucesso. Os recursos alavancaram o setor financeiro da instituição, que passou a reunir e treinar regularmente sua seleção nacional. O objetivo: participar do primeiro campeonato mundial da ITKF em Lima, Peru, em 1990.

Yasuyuki Sasaki, principal referência técnica do karatê tradicional no Estado de São Paulo © Arquivo

Nesse campeonato mundial foi aprovada a Constituição da ITKF. A bela participação técnica de nossa seleção, com a conquista de vários títulos, aliada ao apoio efetivo na redação, preparação e promulgação da Constituição, fez com que a CBKT retornasse ao Brasil com uma vice-presidência da ITKF.

Uma visita decisiva

No mês de agosto de 1990 a CBKT promoveu a vinda do mestre Nishiyama ao Brasil. Realizou-se a primeira clínica de karatê tradicional na Pousada do Rio Quente, em Goiás, com a participação maciça de todas as federações estaduais. Belas e históricas imagens do evento podem ser visualizadas no YouTube, sob o título Clínica de karatê tradicional em Rio Quente, 1990.

Campeonato Brasileiro de 1991 com senseis Carollo, Machida, Tanaka, Sasaki, Watanabe e Küster © Arquivo

“Chutes e socos não são treinados para agredir o outro, mas sim para forjar um indivíduo disciplinado, forte, confiante e preparado para enfrentar as lutas do dia a dia da própria vida. A dualidade entre a serenidade com potência dos golpes cria um equilíbrio entre os aspectos físico e emocional do praticante”, explicou mestre Nishiyama naquele encontro.

A CBKT filiou-se à Federação Internacional de Karatê Tradicional, do mestre Nishiyama, na qual segue até os dias de hoje. A projeção política e histórica do Brasil no âmbito internacional foi evidenciada em 2018, com a eleição do paranaense professor doutor Gilberto Gaertner como presidente e chairman da ITKF.

Oswaldo Mendonça e Luiz Alberto Küster na clínica de realizada na Pousada do Rio Quente (GO) em 1990 © Arquivo

Em 2019 Gaertner foi reeleito com um mandato de quatro anos, até dezembro de 2023 e tem incrementado uma série de inovações em todas as áreas da gestão. Com mais de 60 países filiados na atualidade, a ITKF segue como a maior organização de manutenção e divulgação do karatê tradicional do mundo.